terça-feira, 23 de outubro de 2012

O filho do Feijão


Para a palavra tino, encontrei diversos significados. Gosto das palavras, elas revelam e escondem muitos caminhos. Consegui saber que é a faculdade de avaliar os seres, os fenômenos, as coisas; instinto, juízo natural, discernimento. No sentido figurado  é a virtude que faz prever e procura evitar as inconveniências e os perigos; prudência, precaução. Pode ser também faculdade de perceber, discernir ou pressentir coisas, independente do raciocínio ou da análise; intuição, sentido, tato; ou facilidade de compreensão, agudeza de espírito; perspicácia, sagacidade, penetração, inteligência. Um que me impressionou foi o fato de também poder ser consciência ou domínio de si ou de algo; conhecimento.
Mas foi apenas a curiosidade que me moveu a buscar tantas interpretações para um só vocábulo. O fato é que essa história vai falar de um homem, e não de uma palavra. Muito embora, seja difícil dizer se o homem inventou a palavra ou é inventado por ela.
Laurentino de Almeida – mais conhecido por Tino - é um homem de estatura baixa, forte igual a um tronco de árvore. Sempre que o encontro, ele está com  calça jeans surrada pela lida. Isso, porque trabalha em multifunções, prestador de serviço que é em elétrica, hidráulica e construção. Dessa forma, os rasgos nos joelhos e o desbotado são constantes e somados a poeira dos locais em que executa as tarefas. É prestativo, basta telefonar que ele chega ao local rapidamente. Gosta de conversar e de contar causos. Toda vez que alguém oferece café ou algo para comer, ele aceita e agradece com as mãos unidas, em forma de oração e diz um simpático e comovente “Deus te abençoe.”
Essas práticas são muito comuns, no interior do Brasil. Apesar da pobreza financeira, as pessoas, educadas para trabalhos rurais recebem orientação familiar e religiosa muito forte. Esses dois elementos contribuem para manter um dos estados mais ricos do país, o Paraná, de onde veio nosso personagem, em busca de oportunidades para ele e para a família.
Em um momento de franca dificuldade, Tino rumou para São Paulo, em busca de emprego e por ouvir comentário de amigos sobre as oportunidades que se encontram nesse estado sempre em movimento. Nas avenidas principais, estações de trem e de ônibus, milhares de pessoas desembarcam para conquistarem o sonho supremo de uma vida melhor. Isso nem sempre significa encontrar riqueza; mas ter uma casa, um fogão, um sofá, uma cama adequada e, claro, poder comprar bens supérfluos como roupas, perfumes, entre outros.
Antes mesmo de chegar à grande cidade, ele parou em um condomínio de luxo para finais de semana. Nesse lugar, belas casas são construídas por empresários, profissionais liberais, artistas. É um espaço menos arriscado do que o centro de São Paulo. Decidiu ficar por ali mesmo. Afinal, o ambiente lembrava mais a essência deles, voltados para a natureza. Aquela, em especial, muito bem tratada, constituía um colírio para os olhos.
Conseguiu emprego para ser caseiro de uma das propriedades. Com casa, luz e água de graça, poderia efetuar alguns trabalhos fora da propriedade e ganhar dinheiro extra. O patrão frequentava a chácara apenas aos finais de semana. Isso dava a ele e à esposa a oportunidade de se esforçarem, para, quem sabe, comprar a casa própria.
Tino é casado com a Márcia, mulher bonita, apesar de se perceber nela traços de uma vida desafiadora e rude. Muitas vezes, a mulher foi servente de pedreiro para ele. Juntos, carregavam pedra, areia, cimento. Pai de dois filhos já moços, o mais novo nasceu com  má formação nos pés e demorou a andar. Por muitos anos, arrastou-se ao chão, enquanto pai e mãe trabalhavam em construções, reformas e cuidados com jardins. A dedicação dele e da esposa contribuíram significativamente para que o rapaz crescesse forte e dono dos próprios passos, apesar da deficiência menos grave que ainda carrega.
Gosto muito da companhia dele. Ultimamente nem o tenho visto, pois não tenho necessitado dos serviços que ele oferece, e a vida tem dessas coisas. Nem sempre conseguimos estar o tempo todo com as pessoas de que gostamos.  Mas, sempre foi interessante conversar com ele. Em uma dessas conversas, perguntei:
- Ô Tino, quando você faz aniversário?
- Não sei ao certo, não senhora – respondeu ele.
- Como não sabe? Você faz tantas coisas, instala luz, postes e não sabe a data do seu aniversário? – Brinquei - Aceita um café?
Tino aceitou um café e parou um pouco, para me explicar aquela questão. Calmo, entre um gole e uma tragada no cigarro que ele fumava, contou-me que a família dele era do sítio, local distante do primeiro povoado. Eles não contavam com carro. Transporte era lombo de burro. Cavalo de raça não aguentava aquele trabalho todo.
O pai e a mãe, raramente, iam à cidade. E assim, alimentados pela terra e pelas criações das quais tomavam conta, levavam a vida. Nesse ritmo calmo e de pouco convívio social, nasciam os filhos, ali mesmo, com apoio de parteiras locais. Quantas crianças e mães morriam, na hora do parto, por falta de assistência adequada. Mas, na família do Tino não. Todos vingaram fortes e, desde pequenos, ajudavam pai e mãe nos serviços da roça, de acordo com a idade e com a possibilidade de realizar as tarefas.
E foi assim que muitos irmãos nasceram, no sítio, com auxílio de parteira. A mãe, no dia seguinte, já estava na lida, em casa. As vizinhas preparavam a canja de galinha, para a mãe. Algumas iam, na primeira semana, ajudar nos serviços de casa. Naquela época, água era tirada do poço; o tanque era uma tina – quando havia – em grande parte, as mulheres lavavam a roupa na mina, o banheiro era uma casinha externa e o trabalho doméstico era duro.
Assim, os dias se passavam, mãe ficava grávida novamente, outro filho nascia. Quando o clima colaborava, a colheita era um pouco melhor e pai podia juntar um dinheirinho para ir à cidade, comprar alguns suprimentos e, quem sabe, levar os filhos para registrar, no cartório.
Aquele ano tinha sido muito bom. O feijão rendera muito. O pai do Tino conseguira juntar um dinheiro. Hoje, mulher, vamos levar os piás para a cidade, precisamos registrar os meninos. Sairam antes de o galo cantar, estava escuro. Foram de carroça, para acomodar melhor as crianças. No sacolejo da estrada de terra e esburacada, os pais seguiam orgulhosos com o melhor produto da vida - aquelas crianças todas, empoeiradas pela terra vermelha que, misturada ao suor dos pequenos, transformava em vermelha as faces daqueles anjos.
Chegaram na Cidade, apearam todos e foram primeiro ao cartório. Eram três crianças para registrar. Quando chegou a vez do Laurentino, o cartorário perguntou:
- Nome da criança?
- Laurentino de Almeida – respondeu o pai.
- Data de nascimento? Continuou o cartorário.
Foi nesse momento que o pai do Tino precisou pensar um pouco mais. Fez algumas contas com ajuda dos dedos. Franziu a testa e voltou-se para a mulher.
- Ôh mulher, nasceu quando esse aqui?
Mãe responde:
- Ói, que me recordo, ele nasceu na colheita do feijão.
- Isso foi em agosto, não foi? Conferiu o pai.
- É, deve ter sido. Completou a mãe.
O menino era pequeno, estava por ali e tudo ouviu.
- Então, Sr. escrivão, coloque 20 de agosto. Disse o pai.
O escrivão nem relutou. Aquilo era prática por ali. E foi assim que Laurentino de Almeida recebeu por data de aniversário, do dia da colheita do feijão.
E assim, o feijão, esse alimento tão importante à mesa, marcou a vida de um brasileiro forte, que se  multiplica, no trabalho, no cuidado da família, na orientação dos filhos. Assim também, Ocorre ao grão de mostarda, que um homem tomou e plantou na sua horta, e que cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu pousaram nos seus ramos. (Lucas 13:18-19)

A letra e o espaço



Éramos pré-adolescentes. Estudávamos em uma escola pública muito simples, de bairro pobre, da cidade de São Paulo. A escola apresentava um prédio, de cor amarela, com algumas faixas pintadas a óleo, na cor azul marinho; outros galpões de madeira, serviam de sala e aula para os menores. Nosso sonho era crescer rapidamente e poder subir as escadas daquele prédio de alvenaria da escola.
No local, havia uma pequena quadra de esportes, descoberta. Nela, corríamos, jogávamos queimada e handball. Aqueles momentos olímpicos, se assim podemos dizer; mas era assim que os sentíamos, despertavam em nós competições muito sérias. Algumas delas terminavam em briga, na rua da escola e longe dos olhares da Dona Francisca e do Diretor Geraldo.
A Dona Francisca era um episódio à parte. Mulher muito magra, alta – pelo menos, em nossa medida, da época – brava. Essa senhora ocupava-se de desmanchar as barras das saias das alunas, na entrada do colégio. O Uniforme era composto por sapato preto, com meias três quartos brancas, saia cinza, cinto vermelho e camisa branca, com distintivo da escola aplicado a um bolso. As meninas tinham por hábito encurtar a saia que deveria estar a quatro dedos acima do joelho. O desejo das alunas é que as saias estivessem a, pelo menos, quinze dedos. Mas, a supervisora cuidava para que a regra fosse cumprida. Na entrada, as garotas em fila; e Dona Francisca desfazia as barras. Quem passasse por esse episódio, permaneceria o período todo com a saia descomposta. Isso era muito vergonhoso para a década de 70.
Época em que o Brasil vivia sob o regime militar. Tudo lembrava a disciplina dos quartéis. Da entrada do colégio às proibições, tudo era muito severo. Fazíamos filas para entrar na sala de aula. Antes, hasteávamos a bandeira, ao som o Hino Nacional.  Havia postura obrigatória, silêncio total e respeito. Professores eram sumidades, tarefas eram vitais e os pais compareciam às reuniões de mestres. Meu pai sempre estava presente por lá. Isso imprimia a mim e a minha irmã mais velha obrigatoriedade de apresentar bons resultados.
Independente da rigidez do sistema, sempre gostei muito de aprender e das aulas de Português. Saudades da Dona Ornélia, professora doce e paciente que nos ensinava as letras, na quinta-série do Ensino Fundamental. Quanta paciência e quanta doçura. Havia professores engraçados, por exemplo, a professora de Orfião – canto e música. Aprendíamos a cantar “As Pastorinhas” e precisávamos soltar a voz. Quanto aprendizado. Nas aulas de Educação Moral e Cívica, aprendíamos sobre os poderes governamentais e os deveres do cidadão; direitos eram pouco e nada comentados.
Um episódio marcante vivi na aula de francês, como Professor  Peixoto. Um senhor muito culto e severo, costumava viajar para a frança, regularmente, e nos trazia conceitos artísticos e culturais. Além de contribuir e bastante para nosso crescimento,  ele era bravo e não permitia aos alunos que mascassem chicletes em suas aulas. Se isso ocorresse, éramos postos para fora da aula, sumariamente. O medo que eu vivia desse professor era tanto que, um dia, ao vê-lo entrar na sala de aula, passei a língua pelos dentes, e ele imaginou           que eu estivesse em franco delito. Não adiantou justificativa. Naquele dia, fui colocada para fora da sala. Um verdadeiro desastre para quem queria muito e sempre ter bons resultados. Fiquei no corredor, aos prantos. Naquela época, aluno não ficava fora da classe, sem ser percebido. Imediatamente, Dona Francisca conduziu-me à sala do Diretor Geral. Lá, chorei rios de lágrimas e foram tantas, que, ao invés do castigo e da advertência, fui servida do chá e, pela primeira vez, vi o Diretor empenhado em me acalmar. Eu era aluna dedicada. Talvez, por esse motivo, tenha recebido tratamento diferenciado. O normal era levar a advertência para casa e voltar apenas em companhia dos pais.
Gostávamos de participar de todas as atividades. A vizinhança era tranquila, isso propiciava aos jovens a permissão dos pais para ir e vir, em pseudo liberdade. Nossa escola participava do desfile em comemoração ao sete de setembro; mas, por ser pobre demais, não tínhamos a tão famosa fanfarra. A banda musical das escolas devia ter instrumentos musicais: tambores, pistão, entre outros. Certamente, para quem estudava em galpão de madeira, ter também esses apetrechos era impossível. O bom de ser jovem é não se importar com esses fatores. Decidimos, então, que desfilaríamos ao som da fanfarra da escola vizinha e, claro, concorrente.
Se alguém notou a falta dessa ala, em nosso grupo, nós nem nos abalamos. Desfilamos assim mesmo, com empolgação e com destaque. Pertencíamos todos à classe média baixa, mas os pais eram caprichosos e atentos, contribuíam com a compra de  objetos acessíveis, para embelezar a nossa ação. Sem bandeira, fanfarra e outros elementos, decidimos formar uma comissão de frente.
Claro que a equipe a formar essa comissão deveria ser composta pelas meninas, de alturas semelhantes e bonitas.  O nome da escola era “Escola Estadual de Primeiro Grau República do Chile”. Para destacarmos o nome da nossa querida escola, decidimos – as meninas – vestir um uniforme composto por conga vermelho, meia branca três quartos, saia de cetim vermelha e evasê, camiseta básica branca, com gola careca e mangas curtas. Na camiseta, decidimos colar as letras que compunham  nome da escola. Algumas meninas não carregariam letras, para formar o espaço necessário entre os componentes do nome. Assim decidimos e assim fizemos. Foram horas de dedicação para desenhar, recortar e fixar as letras, nas camisetas brancas, sem sujá-las ou sem deformá-las, vez que, caprichosamente, foram desenhadas, sobre papel alumínio vermelho e recortadas.
Tudo decidido. Tínhamos uma roupa adequada e organizada. A beleza das alunas contribuiria para evitar que notassem a ausência da fanfarra. Esse tipo de atividade formava uma união imbatível, entre os participantes. Uma espécie de orgulho, além das letras que compunham o nome da escola,  invadia o peito dos alunos. A competição sempre estava presente. Todos queriam algum destaque.
O desfile foi marcado para um sábado. Era uma agitação no bairro. Havia, na avenida principal, um comércio bem ativo e, aos sábados, contávamos com uma feira livre que trazia muitas mais pessoas de todo entorno, para as compras. Famosa feira! Quantos amigos nós encontrávamos por lá. Alguns arrastavam os carrinhos para as mães, outros iam apenas para paquerar, outros eram filhos de feirantes e trabalhavam nas barracas. A feira somada ao desfile causou um congestionamento incrível no local. Era tudo o que queríamos, depois de tanto empenho para aparecermos bem, diante daquela sociedade. Nossa escola seria muito bem representada. Em momentos assim, o aprendiz se transforma em grande realizador. Tais ações contribuem para que ele entenda a verdadeira ponte entre as práticas escolares e o ambiente profissional em que, um dia, vai atuar.
Meu pai era muito presente, orgulhoso das filhas e dos resultados que construíamos, estava lá, à beira da avenida, para nos ver desfilar. O percurso era curto. Acredito que menos de um quilômetro. Entretanto, cada passo medido significava um feito heroico semelhante ao de D. Pedro I, no ato da Proclamação da Independência. Na falta de cavalo de raça, trotávamos em ritmo militar sobre nossas congas cabeção.
Naquele dia, acordamos cedo, vestimos o uniforme preparado para o desfile e seguimos para o encontro marcado, na quadra da escola. Muita disciplina. Estávamos ansiosos para colocar nossa escola na avenida. Tudo era importante para que nós estivéssemos presentes e marcássemos nossa ação. Quanta força a soma individual empresta ao coletivo!
Dona Francisca chamou o diretor e disse que podíamos seguir para a Avenida. Todos alinhados, caminhávamos em direção à apoteose. A escola que tinha fanfarra seguiu à frente, e nós, imediatamente atrás, para aproveitamos a cadência daquelas batidas.
Atravessamos o espaço destinado à travessia e sentíamos um valor incrível daqueles olhares admirados para nosso feito. Sim, o poder da realização pode promover voos incríveis, a partir de cada passo. Seguíamos firmes. Para não desconfigurarmos o nome da escola, íamos com os braços entrelaçados. Era muito importante transmitir aquela mensagem e deixar claro que o batuque era de outra escola; mas nós marcávamos o início da mais importante de todas, a nossa. O valor sugerido por pertencer a um grupo é relativo ao orgulho que cada componente sente por fazer parte dele. Isso, nós tínhamos de sobra.
Foi um grande ato. Ao final, no espaço reservado para a concentração das escolas, meu pai acenava, com um ramalhete de rosas vermelhas em uma das mãos e, na outra, uma caixa com um relógio. Esqueci-me de contar que faço aniversário em setembro e o desfile  ocorreu em um sábado, um dia após minha data de nascimento. Outro detalhe importante é que, por ser filha de um imigrante italiano movido pela emoção, aprendi cedo a ser valorizada pelo representante masculino. Recebi, em meio aos presentes, um abraço forte e amoroso de meu pai. Isso sempre foi muito marcante em minha vida. Vou dedicar capítulo à parte, para mais histórias em que meus pais protagonizam grandes feitos.
Para mim, aquele ato foi lindo e, ao mesmo tempo, previsto em minha família. Apesar de não sermos ricos, nosso lar era embalado por músicas, viagens, boas comidas à mesa, muita leitura e diálogo. Meu pai era muito dedicado. A vida dele era resumida ao trabalho e à família. Tudo, fazíamos juntos.
Na época, máquina fotográfica era cara e revelação de foto muito mais. Por esse motivo, não tive foto, na época. Passados trinta anos, ainda mantenho contato com quatro das participantes do desfile. Uma delas,  a Elsie Palmiro, mora no Canadá, há 22 anos. A família dela tinha máquina de fotografia e enviou uma cópia para mim, por e-mail. Maravilhosa invenção tecnológica, para transmissão de informações. Outra, hoje, empresária de sucesso, veio almoçar em minha casa e confessou:
- Odiei você por duas vezes, no dia do desfile.
Eu quis saber por quê. Ela explicou:
- Primeiro você era a letra; e eu era o espaço. Depois, seu pai entregou aqueles presentes a você...
Há uma letra e um espaço, na vida de cada um de nós. Hoje, somos produto do que nossos antepassados puderam fazer por nós. Amanhã, seremos frutos das nossas próprias decisões e vamos interferir – seriamente – na vida de nossos descendentes.

Narrativa cearense


Antonio Rodrigues da Silva, nascido e casado em Nova Russias, Ceará. Era um homem forte, do interior, forjado no calor da lavoura, musculoso. Cresceu assim, humilde, trabalhador, honesto e firme.
E, por conhecer esse caminho, casou-se com Marluce. Moça simples, que conhecera na colheita do algodão. Juntos, tiveram três filhos: duas meninas, um menino. Foi por aquela ocasião que Antonio pode ver a vida se multiplicar e, junto a ela, a possibilidade de a pobreza daquela situação se perpetuar.
Há momentos, na vida, em que uma espécie de raio ilumina a mente do homem. E foi daquela vez que Antonio viu, claramente,  o futuro que esperava por ele e pelos filhos, naquela cidade, naquela região.
Naquele dia dormiu com a dúvida e acordou com a certeza. Sim, aceitaria o convite do primo Josuel. Esse havia seguido para Brasília, em busca de oportunidade de trabalho. Foi pela época da inauguração da Capital. Em verdade, Antonio não sabia muito bem o que significava sair dali e buscar outro caminho. A vida só havia apresentado a ele pequenas trilhas. Mas, afinal, estava decidido,  para quem não tinha nada, qualquer coisa a mais poderia ser bem melhor.
Tomou coragem. Escreveu uma carta. Pediu explicações. Aquele mês se arrastava, à espera de resposta. Sol a sol, Antonio colhia algodão, no sítio do tio. Recebia Cr$4,00 por dia de trabalho. Ao ter o valor, em mãos, pensava nas cinco bocas que precisava alimentar, com menos de CR$1,00 por dia. Sofria por saber que a necessidade iria se arrastar por gerações. Definitivamente, precisava partir.
A angústia cessou, quando o agente do correio local cruzou a praça, montado na velha bicicleta e vestido com aquele uniforme amarelo desbotado, com uma carta em mãos. Nunca antes, aquela roupa do agente brilhara tanto com o sol. O coração disparou em uma batedeira enlouquecida. Antonio sabia. Aquela era a hora. Coragem homem.
O primo escrevia sobre o trabalho,o ganho e animava-o a partir. Antonio Chamou a mulher e informou-a da decisão. Ia só. Precisava ver tudo, antes de arriscar-se com a família. A esposa chorou. Parecia um adeus. Ele lançou um último olhar para os filhos, com a promessa de voltar. Chorem não, bichinhos.Eu volto. Prometo.

Contratou passagem com o pau-de-arara – caminhão que levava os patrícios para tentarem a vida, em  outras paragens. Nem feliz, nem triste, antes, um pouco assustado. Jamais havia se imaginado em tal situação. Assim foi. Só. A família ficou para trás. Acenaram adeus  até o caminho sumir, na estrada poeirenta, até não verem mais o pai. Naquele instante, Antonio se aproveitou do efeito da poeira e pode limpar os olhos. Homem não chora. Fique firme, vá.
E, assim, seguiram-se quinze dias, na carroceria daquele caminhão. Pouca comida. Quase sem água e sem paragens para se abastecer. Com o passar dos dias, a barba tomava conta daquele rosto já magro e, agora, com ar bem mais cansado.
Era ano de 1977. Há dez anos, Brasília havia sido inaugurada e muita mão de obra era necessária para erguer todos os prédios que acomodariam os governantes do Brasil. Foi nesse cenário que Antonio chegou por lá. Emprego certo, em construções. Ajudante de pedreiro, meia colher, CR$50,00, por dia. Era uma fortuna, nunca antes imaginada. Cansado; mas animado pelo ganho diário, viu as forças redobrarem e pegou firme na pá.
Revirar a terra era mais fácil do que revolver pedra, areia, cimento e água. Enquanto no Ceará plantavam algodão – planta baixa e de flor suave – no novo estado, plantavam prédios altos, duros, reforçados por barras de ferro e vigas de concreto. Aquilo não caia não senhor. Duro como pedra, alto igual a espigão. De vez enquando, Antonio comparava a altura dos homens à altura dos prédios. Como pode um homem tão pequeno construir prédios tão altos. Êta mundo besta, meu Deus.
Pensar era de graça. Comer o que serviam, durante o serviço na obra, e guardar o dinheiro, para trazer a família. Sim, ele os traria. Jamais deixaria aqueles olhos inocentes para trás. Sentia-se só. Queria amar a esposa e dormir, de novo, naquele colo macio, para aliviar a cama dura. Era do que precisava e ia fazer por onde. Trabalhou duro, juntou o dinheiro, conseguiu somar o valor das passagens.
Avisou a família. Que trouxessem tudo, roupas, o que desse. Voltar, talvez, fosse bem difícil.
A esposa, feliz, recebeu o aviso. Juntou os meninos “Bora prá Brasília. Nossa vida vai se outra. Mais feijão, na mesa. O pai do cêis mandou seguir.” Decidida, nem pensou, juntou os filhos, deu um banho neles, arranjou as trouxas de roupa – tudo o que tinham – e partiu, rumo ao marido. Sentia saudade, queria vê-lo. Estava feliz. Ele lembrou-se dela e dos filhos. Quantos não voltavam!
A viagem foi longa. As crianças queriam saber – demora, mainha?  Ela não sabia dizer, era a primeira vez, pedia paciência. Por fim, nem respondia. Sofria a falta de conforto, compensada pelas ideias de uma nova vida.
Chegaram, enfim. O marido esperava ansioso. Enquanto viajavam, ele juntava mais dinheiro, para poder arranjar um quarto; mas não fora possível. Dormiram dois dias no vão da ponte mesmo. O ar seco e quente contribuiu para acolhê-los. Estavam bem e felizes, juntos.
Foi no terceiro dia que conseguiu um cômodo para a família, com banheiro coletivo. Era um cortiço; mas para começar, estava bem. Alojou ali a família e “simbora, ganhar dinheiro”.

Os amigos da obra frequentavam o Morro o urubu. Lugar famoso pelas quengas que viviam lá. Ele nunca havia ido; mas a curiosidade o arrastou até o local. Ele forte, bem apessoado, já alimentado pela marmita da obra. Agora, estava na força do homem, no poder. A família por ali. Já podia dar-se ao direito de uma farra. Ninguém ia saber mesmo.
Envolvido pelo pensamento, não imaginava o momento decisivo que viveria ali, naquele lugar.
Aproximou-se um soldado, olhou para Antonio e  perguntou:
- Ô, paisano, tu és capaz de matar um homem
Ele, sempre pronto, respondeu:
- se for para salvar minha vida. Oxê, sim.
Sem sequer imaginar o que o esperava, o milico respondeu:
- Então, pegue esse porrete e seja polícia. Precisamos de homens fortes como tu, lá, no quartel.
E assim, Antonio se tornou polícia, respeitado. Salário bom, pode educar os filhos e comprar uma casinha. O plano dele era ver cada filho com uma casa própria. E isso, ele viu.
É, a vida tem dessas surpresas.
Encontrei o filho dele, motorista de um táxi, a caminho do aeroporto Juscelino Kubitscheck, em Brasília. Orgulhoso, contou-me a história da chegada e das bravuras do pai. Confessou que a mãe não sabia sobre o caso do Morro dos urubus. Não carecia.

                                                                                                           Irma Ugarelli