Éramos
pré-adolescentes. Estudávamos em uma escola pública muito simples, de bairro
pobre, da cidade de São Paulo. A escola apresentava um prédio, de cor amarela,
com algumas faixas pintadas a óleo, na cor azul marinho; outros galpões de
madeira, serviam de sala e aula para os menores. Nosso sonho era crescer
rapidamente e poder subir as escadas daquele prédio de alvenaria da escola.
No local, havia
uma pequena quadra de esportes, descoberta. Nela, corríamos, jogávamos queimada
e handball. Aqueles momentos olímpicos, se assim podemos dizer; mas era assim que
os sentíamos, despertavam em nós competições muito sérias. Algumas delas
terminavam em briga, na rua da escola e longe dos olhares da Dona Francisca e
do Diretor Geraldo.
A Dona Francisca
era um episódio à parte. Mulher muito magra, alta – pelo menos, em nossa
medida, da época – brava. Essa senhora ocupava-se de desmanchar as barras das
saias das alunas, na entrada do colégio. O Uniforme era composto por sapato
preto, com meias três quartos brancas, saia cinza, cinto vermelho e camisa
branca, com distintivo da escola aplicado a um bolso. As meninas tinham por
hábito encurtar a saia que deveria estar a quatro dedos acima do joelho. O
desejo das alunas é que as saias estivessem a, pelo menos, quinze dedos. Mas, a
supervisora cuidava para que a regra fosse cumprida. Na entrada, as garotas em
fila; e Dona Francisca desfazia as barras. Quem passasse por esse episódio,
permaneceria o período todo com a saia descomposta. Isso era muito vergonhoso
para a década de 70.
Época em que o
Brasil vivia sob o regime militar. Tudo lembrava a disciplina dos quartéis. Da
entrada do colégio às proibições, tudo era muito severo. Fazíamos filas para
entrar na sala de aula. Antes, hasteávamos a bandeira, ao som o Hino
Nacional. Havia postura obrigatória,
silêncio total e respeito. Professores eram sumidades, tarefas eram vitais e os
pais compareciam às reuniões de mestres. Meu pai sempre estava presente por lá.
Isso imprimia a mim e a minha irmã mais velha obrigatoriedade de apresentar
bons resultados.
Independente da
rigidez do sistema, sempre gostei muito de aprender e das aulas de Português.
Saudades da Dona Ornélia, professora doce e paciente que nos ensinava as
letras, na quinta-série do Ensino Fundamental. Quanta paciência e quanta
doçura. Havia professores engraçados, por exemplo, a professora de Orfião –
canto e música. Aprendíamos a cantar “As Pastorinhas” e precisávamos soltar a
voz. Quanto aprendizado. Nas aulas de Educação Moral e Cívica, aprendíamos
sobre os poderes governamentais e os deveres do cidadão; direitos eram pouco e
nada comentados.
Um episódio
marcante vivi na aula de francês, como Professor Peixoto. Um senhor muito culto e severo,
costumava viajar para a frança, regularmente, e nos trazia conceitos artísticos
e culturais. Além de contribuir e bastante para nosso crescimento, ele era bravo e não permitia aos alunos que
mascassem chicletes em suas aulas. Se isso ocorresse, éramos postos para fora
da aula, sumariamente. O medo que eu vivia desse professor era tanto que, um
dia, ao vê-lo entrar na sala de aula, passei a língua pelos dentes, e ele
imaginou que eu estivesse em
franco delito. Não adiantou justificativa. Naquele dia, fui colocada para fora
da sala. Um verdadeiro desastre para quem queria muito e sempre ter bons
resultados. Fiquei no corredor, aos prantos. Naquela época, aluno não ficava
fora da classe, sem ser percebido. Imediatamente, Dona Francisca conduziu-me à
sala do Diretor Geral. Lá, chorei rios de lágrimas e foram tantas, que, ao
invés do castigo e da advertência, fui servida do chá e, pela primeira vez, vi
o Diretor empenhado em me acalmar. Eu era aluna dedicada. Talvez, por esse
motivo, tenha recebido tratamento diferenciado. O normal era levar a
advertência para casa e voltar apenas em companhia dos pais.
Gostávamos de
participar de todas as atividades. A vizinhança era tranquila, isso propiciava
aos jovens a permissão dos pais para ir e vir, em pseudo liberdade. Nossa
escola participava do desfile em comemoração ao sete de setembro; mas, por ser
pobre demais, não tínhamos a tão famosa fanfarra. A banda musical das escolas
devia ter instrumentos musicais: tambores, pistão, entre outros. Certamente,
para quem estudava em galpão de madeira, ter também esses apetrechos era
impossível. O bom de ser jovem é não se importar com esses fatores. Decidimos,
então, que desfilaríamos ao som da fanfarra da escola vizinha e, claro,
concorrente.
Se alguém notou
a falta dessa ala, em nosso grupo, nós nem nos abalamos. Desfilamos assim
mesmo, com empolgação e com destaque. Pertencíamos todos à classe média baixa,
mas os pais eram caprichosos e atentos, contribuíam com a compra de objetos acessíveis, para embelezar a nossa
ação. Sem bandeira, fanfarra e outros elementos, decidimos formar uma comissão
de frente.
Claro que a
equipe a formar essa comissão deveria ser composta pelas meninas, de alturas
semelhantes e bonitas. O nome da escola
era “Escola Estadual de Primeiro Grau República do Chile”. Para destacarmos o
nome da nossa querida escola, decidimos – as meninas – vestir um uniforme
composto por conga vermelho, meia branca três quartos, saia de cetim vermelha e
evasê, camiseta básica branca, com gola careca e mangas curtas. Na camiseta,
decidimos colar as letras que compunham
nome da escola. Algumas meninas não carregariam letras, para formar o
espaço necessário entre os componentes do nome. Assim decidimos e assim
fizemos. Foram horas de dedicação para desenhar, recortar e fixar as letras,
nas camisetas brancas, sem sujá-las ou sem deformá-las, vez que,
caprichosamente, foram desenhadas, sobre papel alumínio vermelho e recortadas.
Tudo decidido.
Tínhamos uma roupa adequada e organizada. A beleza das alunas contribuiria para
evitar que notassem a ausência da fanfarra. Esse tipo de atividade formava uma
união imbatível, entre os participantes. Uma espécie de orgulho, além das
letras que compunham o nome da escola, invadia o peito dos alunos. A competição
sempre estava presente. Todos queriam algum destaque.
O desfile foi
marcado para um sábado. Era uma agitação no bairro. Havia, na avenida
principal, um comércio bem ativo e, aos sábados, contávamos com uma feira livre
que trazia muitas mais pessoas de todo entorno, para as compras. Famosa feira!
Quantos amigos nós encontrávamos por lá. Alguns arrastavam os carrinhos para as
mães, outros iam apenas para paquerar, outros eram filhos de feirantes e trabalhavam
nas barracas. A feira somada ao desfile causou um congestionamento incrível no
local. Era tudo o que queríamos, depois de tanto empenho para aparecermos bem,
diante daquela sociedade. Nossa escola seria muito bem representada. Em
momentos assim, o aprendiz se transforma em grande realizador. Tais ações
contribuem para que ele entenda a verdadeira ponte entre as práticas escolares
e o ambiente profissional em que, um dia, vai atuar.
Meu pai era
muito presente, orgulhoso das filhas e dos resultados que construíamos, estava
lá, à beira da avenida, para nos ver desfilar. O percurso era curto. Acredito
que menos de um quilômetro. Entretanto, cada passo medido significava um feito
heroico semelhante ao de D. Pedro I, no ato da Proclamação da Independência. Na
falta de cavalo de raça, trotávamos em ritmo militar sobre nossas congas
cabeção.
Naquele dia,
acordamos cedo, vestimos o uniforme preparado para o desfile e seguimos para o
encontro marcado, na quadra da escola. Muita disciplina. Estávamos ansiosos para
colocar nossa escola na avenida. Tudo era importante para que nós estivéssemos
presentes e marcássemos nossa ação. Quanta força a soma individual empresta ao
coletivo!
Dona Francisca
chamou o diretor e disse que podíamos seguir para a Avenida. Todos alinhados,
caminhávamos em direção à apoteose. A escola que tinha fanfarra seguiu à
frente, e nós, imediatamente atrás, para aproveitamos a cadência daquelas
batidas.
Atravessamos o
espaço destinado à travessia e sentíamos um valor incrível daqueles olhares
admirados para nosso feito. Sim, o poder da realização pode promover voos
incríveis, a partir de cada passo. Seguíamos firmes. Para não desconfigurarmos
o nome da escola, íamos com os braços entrelaçados. Era muito importante
transmitir aquela mensagem e deixar claro que o batuque era de outra escola;
mas nós marcávamos o início da mais importante de todas, a nossa. O valor
sugerido por pertencer a um grupo é relativo ao orgulho que cada componente
sente por fazer parte dele. Isso, nós tínhamos de sobra.
Foi um grande
ato. Ao final, no espaço reservado para a concentração das escolas, meu pai
acenava, com um ramalhete de rosas vermelhas em uma das mãos e, na outra, uma
caixa com um relógio. Esqueci-me de contar que faço aniversário em setembro e o
desfile ocorreu em um sábado, um dia
após minha data de nascimento. Outro detalhe importante é que, por ser filha de
um imigrante italiano movido pela emoção, aprendi cedo a ser valorizada pelo
representante masculino. Recebi, em meio aos presentes, um abraço forte e
amoroso de meu pai. Isso sempre foi muito marcante em minha vida. Vou dedicar
capítulo à parte, para mais histórias em que meus pais protagonizam grandes
feitos.
Para mim, aquele
ato foi lindo e, ao mesmo tempo, previsto em minha família. Apesar de não
sermos ricos, nosso lar era embalado por músicas, viagens, boas comidas à mesa,
muita leitura e diálogo. Meu pai era muito dedicado. A vida dele era resumida
ao trabalho e à família. Tudo, fazíamos juntos.
Na época,
máquina fotográfica era cara e revelação de foto muito mais. Por esse motivo,
não tive foto, na época. Passados trinta anos, ainda mantenho contato com
quatro das participantes do desfile. Uma delas, a Elsie Palmiro, mora no Canadá, há 22 anos. A
família dela tinha máquina de fotografia e enviou uma cópia para mim, por
e-mail. Maravilhosa invenção tecnológica, para transmissão de informações.
Outra, hoje, empresária de sucesso, veio almoçar em minha casa e confessou:
- Odiei você por
duas vezes, no dia do desfile.
Eu quis saber
por quê. Ela explicou:
- Primeiro você
era a letra; e eu era o espaço. Depois, seu pai entregou aqueles presentes a
você...
Há uma letra e
um espaço, na vida de cada um de nós. Hoje, somos produto do que nossos
antepassados puderam fazer por nós. Amanhã, seremos frutos das nossas próprias
decisões e vamos interferir – seriamente – na vida de nossos descendentes.
Irma, que narrativa! Ao ler, parecia que estava revivendo aqueles dias na escola, realmente muitos valores nós trouxemos para nossas vidas, um deles foi o aprender de verdade, o conhecimento, a cultura. Isso nos proporcionou formar opinião, de lutar por dias melhores. Embora uma escola pobre, o ensino era muito rico, aula de musica, com a professora "Dona Maria José" e aos sábados. O professor Peixoto, Dona Marines de Ingles, a de Geografia, o Mantovani de ciência! Nossas amizades eram sinseras de valores, de simplicidade, quantos trabalhos de equipe em casa, quantas meninas queriam ser professoras, porque ser professor era uma profissão diferenciada, para não dizer valorizada. E hoje podemos ter o privilegio de reunir nossos amigos e reviver, de relembrar tantos momentos lindos que guardamos até hoje. Grande abraço!
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