terça-feira, 23 de outubro de 2012

A letra e o espaço



Éramos pré-adolescentes. Estudávamos em uma escola pública muito simples, de bairro pobre, da cidade de São Paulo. A escola apresentava um prédio, de cor amarela, com algumas faixas pintadas a óleo, na cor azul marinho; outros galpões de madeira, serviam de sala e aula para os menores. Nosso sonho era crescer rapidamente e poder subir as escadas daquele prédio de alvenaria da escola.
No local, havia uma pequena quadra de esportes, descoberta. Nela, corríamos, jogávamos queimada e handball. Aqueles momentos olímpicos, se assim podemos dizer; mas era assim que os sentíamos, despertavam em nós competições muito sérias. Algumas delas terminavam em briga, na rua da escola e longe dos olhares da Dona Francisca e do Diretor Geraldo.
A Dona Francisca era um episódio à parte. Mulher muito magra, alta – pelo menos, em nossa medida, da época – brava. Essa senhora ocupava-se de desmanchar as barras das saias das alunas, na entrada do colégio. O Uniforme era composto por sapato preto, com meias três quartos brancas, saia cinza, cinto vermelho e camisa branca, com distintivo da escola aplicado a um bolso. As meninas tinham por hábito encurtar a saia que deveria estar a quatro dedos acima do joelho. O desejo das alunas é que as saias estivessem a, pelo menos, quinze dedos. Mas, a supervisora cuidava para que a regra fosse cumprida. Na entrada, as garotas em fila; e Dona Francisca desfazia as barras. Quem passasse por esse episódio, permaneceria o período todo com a saia descomposta. Isso era muito vergonhoso para a década de 70.
Época em que o Brasil vivia sob o regime militar. Tudo lembrava a disciplina dos quartéis. Da entrada do colégio às proibições, tudo era muito severo. Fazíamos filas para entrar na sala de aula. Antes, hasteávamos a bandeira, ao som o Hino Nacional.  Havia postura obrigatória, silêncio total e respeito. Professores eram sumidades, tarefas eram vitais e os pais compareciam às reuniões de mestres. Meu pai sempre estava presente por lá. Isso imprimia a mim e a minha irmã mais velha obrigatoriedade de apresentar bons resultados.
Independente da rigidez do sistema, sempre gostei muito de aprender e das aulas de Português. Saudades da Dona Ornélia, professora doce e paciente que nos ensinava as letras, na quinta-série do Ensino Fundamental. Quanta paciência e quanta doçura. Havia professores engraçados, por exemplo, a professora de Orfião – canto e música. Aprendíamos a cantar “As Pastorinhas” e precisávamos soltar a voz. Quanto aprendizado. Nas aulas de Educação Moral e Cívica, aprendíamos sobre os poderes governamentais e os deveres do cidadão; direitos eram pouco e nada comentados.
Um episódio marcante vivi na aula de francês, como Professor  Peixoto. Um senhor muito culto e severo, costumava viajar para a frança, regularmente, e nos trazia conceitos artísticos e culturais. Além de contribuir e bastante para nosso crescimento,  ele era bravo e não permitia aos alunos que mascassem chicletes em suas aulas. Se isso ocorresse, éramos postos para fora da aula, sumariamente. O medo que eu vivia desse professor era tanto que, um dia, ao vê-lo entrar na sala de aula, passei a língua pelos dentes, e ele imaginou           que eu estivesse em franco delito. Não adiantou justificativa. Naquele dia, fui colocada para fora da sala. Um verdadeiro desastre para quem queria muito e sempre ter bons resultados. Fiquei no corredor, aos prantos. Naquela época, aluno não ficava fora da classe, sem ser percebido. Imediatamente, Dona Francisca conduziu-me à sala do Diretor Geral. Lá, chorei rios de lágrimas e foram tantas, que, ao invés do castigo e da advertência, fui servida do chá e, pela primeira vez, vi o Diretor empenhado em me acalmar. Eu era aluna dedicada. Talvez, por esse motivo, tenha recebido tratamento diferenciado. O normal era levar a advertência para casa e voltar apenas em companhia dos pais.
Gostávamos de participar de todas as atividades. A vizinhança era tranquila, isso propiciava aos jovens a permissão dos pais para ir e vir, em pseudo liberdade. Nossa escola participava do desfile em comemoração ao sete de setembro; mas, por ser pobre demais, não tínhamos a tão famosa fanfarra. A banda musical das escolas devia ter instrumentos musicais: tambores, pistão, entre outros. Certamente, para quem estudava em galpão de madeira, ter também esses apetrechos era impossível. O bom de ser jovem é não se importar com esses fatores. Decidimos, então, que desfilaríamos ao som da fanfarra da escola vizinha e, claro, concorrente.
Se alguém notou a falta dessa ala, em nosso grupo, nós nem nos abalamos. Desfilamos assim mesmo, com empolgação e com destaque. Pertencíamos todos à classe média baixa, mas os pais eram caprichosos e atentos, contribuíam com a compra de  objetos acessíveis, para embelezar a nossa ação. Sem bandeira, fanfarra e outros elementos, decidimos formar uma comissão de frente.
Claro que a equipe a formar essa comissão deveria ser composta pelas meninas, de alturas semelhantes e bonitas.  O nome da escola era “Escola Estadual de Primeiro Grau República do Chile”. Para destacarmos o nome da nossa querida escola, decidimos – as meninas – vestir um uniforme composto por conga vermelho, meia branca três quartos, saia de cetim vermelha e evasê, camiseta básica branca, com gola careca e mangas curtas. Na camiseta, decidimos colar as letras que compunham  nome da escola. Algumas meninas não carregariam letras, para formar o espaço necessário entre os componentes do nome. Assim decidimos e assim fizemos. Foram horas de dedicação para desenhar, recortar e fixar as letras, nas camisetas brancas, sem sujá-las ou sem deformá-las, vez que, caprichosamente, foram desenhadas, sobre papel alumínio vermelho e recortadas.
Tudo decidido. Tínhamos uma roupa adequada e organizada. A beleza das alunas contribuiria para evitar que notassem a ausência da fanfarra. Esse tipo de atividade formava uma união imbatível, entre os participantes. Uma espécie de orgulho, além das letras que compunham o nome da escola,  invadia o peito dos alunos. A competição sempre estava presente. Todos queriam algum destaque.
O desfile foi marcado para um sábado. Era uma agitação no bairro. Havia, na avenida principal, um comércio bem ativo e, aos sábados, contávamos com uma feira livre que trazia muitas mais pessoas de todo entorno, para as compras. Famosa feira! Quantos amigos nós encontrávamos por lá. Alguns arrastavam os carrinhos para as mães, outros iam apenas para paquerar, outros eram filhos de feirantes e trabalhavam nas barracas. A feira somada ao desfile causou um congestionamento incrível no local. Era tudo o que queríamos, depois de tanto empenho para aparecermos bem, diante daquela sociedade. Nossa escola seria muito bem representada. Em momentos assim, o aprendiz se transforma em grande realizador. Tais ações contribuem para que ele entenda a verdadeira ponte entre as práticas escolares e o ambiente profissional em que, um dia, vai atuar.
Meu pai era muito presente, orgulhoso das filhas e dos resultados que construíamos, estava lá, à beira da avenida, para nos ver desfilar. O percurso era curto. Acredito que menos de um quilômetro. Entretanto, cada passo medido significava um feito heroico semelhante ao de D. Pedro I, no ato da Proclamação da Independência. Na falta de cavalo de raça, trotávamos em ritmo militar sobre nossas congas cabeção.
Naquele dia, acordamos cedo, vestimos o uniforme preparado para o desfile e seguimos para o encontro marcado, na quadra da escola. Muita disciplina. Estávamos ansiosos para colocar nossa escola na avenida. Tudo era importante para que nós estivéssemos presentes e marcássemos nossa ação. Quanta força a soma individual empresta ao coletivo!
Dona Francisca chamou o diretor e disse que podíamos seguir para a Avenida. Todos alinhados, caminhávamos em direção à apoteose. A escola que tinha fanfarra seguiu à frente, e nós, imediatamente atrás, para aproveitamos a cadência daquelas batidas.
Atravessamos o espaço destinado à travessia e sentíamos um valor incrível daqueles olhares admirados para nosso feito. Sim, o poder da realização pode promover voos incríveis, a partir de cada passo. Seguíamos firmes. Para não desconfigurarmos o nome da escola, íamos com os braços entrelaçados. Era muito importante transmitir aquela mensagem e deixar claro que o batuque era de outra escola; mas nós marcávamos o início da mais importante de todas, a nossa. O valor sugerido por pertencer a um grupo é relativo ao orgulho que cada componente sente por fazer parte dele. Isso, nós tínhamos de sobra.
Foi um grande ato. Ao final, no espaço reservado para a concentração das escolas, meu pai acenava, com um ramalhete de rosas vermelhas em uma das mãos e, na outra, uma caixa com um relógio. Esqueci-me de contar que faço aniversário em setembro e o desfile  ocorreu em um sábado, um dia após minha data de nascimento. Outro detalhe importante é que, por ser filha de um imigrante italiano movido pela emoção, aprendi cedo a ser valorizada pelo representante masculino. Recebi, em meio aos presentes, um abraço forte e amoroso de meu pai. Isso sempre foi muito marcante em minha vida. Vou dedicar capítulo à parte, para mais histórias em que meus pais protagonizam grandes feitos.
Para mim, aquele ato foi lindo e, ao mesmo tempo, previsto em minha família. Apesar de não sermos ricos, nosso lar era embalado por músicas, viagens, boas comidas à mesa, muita leitura e diálogo. Meu pai era muito dedicado. A vida dele era resumida ao trabalho e à família. Tudo, fazíamos juntos.
Na época, máquina fotográfica era cara e revelação de foto muito mais. Por esse motivo, não tive foto, na época. Passados trinta anos, ainda mantenho contato com quatro das participantes do desfile. Uma delas,  a Elsie Palmiro, mora no Canadá, há 22 anos. A família dela tinha máquina de fotografia e enviou uma cópia para mim, por e-mail. Maravilhosa invenção tecnológica, para transmissão de informações. Outra, hoje, empresária de sucesso, veio almoçar em minha casa e confessou:
- Odiei você por duas vezes, no dia do desfile.
Eu quis saber por quê. Ela explicou:
- Primeiro você era a letra; e eu era o espaço. Depois, seu pai entregou aqueles presentes a você...
Há uma letra e um espaço, na vida de cada um de nós. Hoje, somos produto do que nossos antepassados puderam fazer por nós. Amanhã, seremos frutos das nossas próprias decisões e vamos interferir – seriamente – na vida de nossos descendentes.

Um comentário:

  1. Irma, que narrativa! Ao ler, parecia que estava revivendo aqueles dias na escola, realmente muitos valores nós trouxemos para nossas vidas, um deles foi o aprender de verdade, o conhecimento, a cultura. Isso nos proporcionou formar opinião, de lutar por dias melhores. Embora uma escola pobre, o ensino era muito rico, aula de musica, com a professora "Dona Maria José" e aos sábados. O professor Peixoto, Dona Marines de Ingles, a de Geografia, o Mantovani de ciência! Nossas amizades eram sinseras de valores, de simplicidade, quantos trabalhos de equipe em casa, quantas meninas queriam ser professoras, porque ser professor era uma profissão diferenciada, para não dizer valorizada. E hoje podemos ter o privilegio de reunir nossos amigos e reviver, de relembrar tantos momentos lindos que guardamos até hoje. Grande abraço!

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