terça-feira, 23 de outubro de 2012

O filho do Feijão


Para a palavra tino, encontrei diversos significados. Gosto das palavras, elas revelam e escondem muitos caminhos. Consegui saber que é a faculdade de avaliar os seres, os fenômenos, as coisas; instinto, juízo natural, discernimento. No sentido figurado  é a virtude que faz prever e procura evitar as inconveniências e os perigos; prudência, precaução. Pode ser também faculdade de perceber, discernir ou pressentir coisas, independente do raciocínio ou da análise; intuição, sentido, tato; ou facilidade de compreensão, agudeza de espírito; perspicácia, sagacidade, penetração, inteligência. Um que me impressionou foi o fato de também poder ser consciência ou domínio de si ou de algo; conhecimento.
Mas foi apenas a curiosidade que me moveu a buscar tantas interpretações para um só vocábulo. O fato é que essa história vai falar de um homem, e não de uma palavra. Muito embora, seja difícil dizer se o homem inventou a palavra ou é inventado por ela.
Laurentino de Almeida – mais conhecido por Tino - é um homem de estatura baixa, forte igual a um tronco de árvore. Sempre que o encontro, ele está com  calça jeans surrada pela lida. Isso, porque trabalha em multifunções, prestador de serviço que é em elétrica, hidráulica e construção. Dessa forma, os rasgos nos joelhos e o desbotado são constantes e somados a poeira dos locais em que executa as tarefas. É prestativo, basta telefonar que ele chega ao local rapidamente. Gosta de conversar e de contar causos. Toda vez que alguém oferece café ou algo para comer, ele aceita e agradece com as mãos unidas, em forma de oração e diz um simpático e comovente “Deus te abençoe.”
Essas práticas são muito comuns, no interior do Brasil. Apesar da pobreza financeira, as pessoas, educadas para trabalhos rurais recebem orientação familiar e religiosa muito forte. Esses dois elementos contribuem para manter um dos estados mais ricos do país, o Paraná, de onde veio nosso personagem, em busca de oportunidades para ele e para a família.
Em um momento de franca dificuldade, Tino rumou para São Paulo, em busca de emprego e por ouvir comentário de amigos sobre as oportunidades que se encontram nesse estado sempre em movimento. Nas avenidas principais, estações de trem e de ônibus, milhares de pessoas desembarcam para conquistarem o sonho supremo de uma vida melhor. Isso nem sempre significa encontrar riqueza; mas ter uma casa, um fogão, um sofá, uma cama adequada e, claro, poder comprar bens supérfluos como roupas, perfumes, entre outros.
Antes mesmo de chegar à grande cidade, ele parou em um condomínio de luxo para finais de semana. Nesse lugar, belas casas são construídas por empresários, profissionais liberais, artistas. É um espaço menos arriscado do que o centro de São Paulo. Decidiu ficar por ali mesmo. Afinal, o ambiente lembrava mais a essência deles, voltados para a natureza. Aquela, em especial, muito bem tratada, constituía um colírio para os olhos.
Conseguiu emprego para ser caseiro de uma das propriedades. Com casa, luz e água de graça, poderia efetuar alguns trabalhos fora da propriedade e ganhar dinheiro extra. O patrão frequentava a chácara apenas aos finais de semana. Isso dava a ele e à esposa a oportunidade de se esforçarem, para, quem sabe, comprar a casa própria.
Tino é casado com a Márcia, mulher bonita, apesar de se perceber nela traços de uma vida desafiadora e rude. Muitas vezes, a mulher foi servente de pedreiro para ele. Juntos, carregavam pedra, areia, cimento. Pai de dois filhos já moços, o mais novo nasceu com  má formação nos pés e demorou a andar. Por muitos anos, arrastou-se ao chão, enquanto pai e mãe trabalhavam em construções, reformas e cuidados com jardins. A dedicação dele e da esposa contribuíram significativamente para que o rapaz crescesse forte e dono dos próprios passos, apesar da deficiência menos grave que ainda carrega.
Gosto muito da companhia dele. Ultimamente nem o tenho visto, pois não tenho necessitado dos serviços que ele oferece, e a vida tem dessas coisas. Nem sempre conseguimos estar o tempo todo com as pessoas de que gostamos.  Mas, sempre foi interessante conversar com ele. Em uma dessas conversas, perguntei:
- Ô Tino, quando você faz aniversário?
- Não sei ao certo, não senhora – respondeu ele.
- Como não sabe? Você faz tantas coisas, instala luz, postes e não sabe a data do seu aniversário? – Brinquei - Aceita um café?
Tino aceitou um café e parou um pouco, para me explicar aquela questão. Calmo, entre um gole e uma tragada no cigarro que ele fumava, contou-me que a família dele era do sítio, local distante do primeiro povoado. Eles não contavam com carro. Transporte era lombo de burro. Cavalo de raça não aguentava aquele trabalho todo.
O pai e a mãe, raramente, iam à cidade. E assim, alimentados pela terra e pelas criações das quais tomavam conta, levavam a vida. Nesse ritmo calmo e de pouco convívio social, nasciam os filhos, ali mesmo, com apoio de parteiras locais. Quantas crianças e mães morriam, na hora do parto, por falta de assistência adequada. Mas, na família do Tino não. Todos vingaram fortes e, desde pequenos, ajudavam pai e mãe nos serviços da roça, de acordo com a idade e com a possibilidade de realizar as tarefas.
E foi assim que muitos irmãos nasceram, no sítio, com auxílio de parteira. A mãe, no dia seguinte, já estava na lida, em casa. As vizinhas preparavam a canja de galinha, para a mãe. Algumas iam, na primeira semana, ajudar nos serviços de casa. Naquela época, água era tirada do poço; o tanque era uma tina – quando havia – em grande parte, as mulheres lavavam a roupa na mina, o banheiro era uma casinha externa e o trabalho doméstico era duro.
Assim, os dias se passavam, mãe ficava grávida novamente, outro filho nascia. Quando o clima colaborava, a colheita era um pouco melhor e pai podia juntar um dinheirinho para ir à cidade, comprar alguns suprimentos e, quem sabe, levar os filhos para registrar, no cartório.
Aquele ano tinha sido muito bom. O feijão rendera muito. O pai do Tino conseguira juntar um dinheiro. Hoje, mulher, vamos levar os piás para a cidade, precisamos registrar os meninos. Sairam antes de o galo cantar, estava escuro. Foram de carroça, para acomodar melhor as crianças. No sacolejo da estrada de terra e esburacada, os pais seguiam orgulhosos com o melhor produto da vida - aquelas crianças todas, empoeiradas pela terra vermelha que, misturada ao suor dos pequenos, transformava em vermelha as faces daqueles anjos.
Chegaram na Cidade, apearam todos e foram primeiro ao cartório. Eram três crianças para registrar. Quando chegou a vez do Laurentino, o cartorário perguntou:
- Nome da criança?
- Laurentino de Almeida – respondeu o pai.
- Data de nascimento? Continuou o cartorário.
Foi nesse momento que o pai do Tino precisou pensar um pouco mais. Fez algumas contas com ajuda dos dedos. Franziu a testa e voltou-se para a mulher.
- Ôh mulher, nasceu quando esse aqui?
Mãe responde:
- Ói, que me recordo, ele nasceu na colheita do feijão.
- Isso foi em agosto, não foi? Conferiu o pai.
- É, deve ter sido. Completou a mãe.
O menino era pequeno, estava por ali e tudo ouviu.
- Então, Sr. escrivão, coloque 20 de agosto. Disse o pai.
O escrivão nem relutou. Aquilo era prática por ali. E foi assim que Laurentino de Almeida recebeu por data de aniversário, do dia da colheita do feijão.
E assim, o feijão, esse alimento tão importante à mesa, marcou a vida de um brasileiro forte, que se  multiplica, no trabalho, no cuidado da família, na orientação dos filhos. Assim também, Ocorre ao grão de mostarda, que um homem tomou e plantou na sua horta, e que cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu pousaram nos seus ramos. (Lucas 13:18-19)

Nenhum comentário:

Postar um comentário