Trabalhávamos em uma escola que
completava duzentos anos de existência.
Muita experiência e competência na área educacional para jovens. Em
comparação com as escolas públicas ou particulares locais, ofereciam
remuneração muito acima da média para os professores que lá trabalhavam.
O trabalho do professor é muito
mais missão do que profissão. Nele, resumem-se a formação da sociedade e do
desenvolvimento de um país. No Brasil, há muito tempo e por questões políticas
controversas, esse profissional sofreu o que chamamos de “sucateamento”. Há
falta de plano de carreira, de incentivo, de bons salários, de condições para
exercer a docência, enfim, sobrevivem os bravos e fortes que sabem o quanto
significam para o encaminhamento da nação e, animados pelo retorno que, às
vezes, recebem da sociedade, seguem firmes, nessa estrada. Essa é a dura
realidade nacional.
Naquela escola, tínhamos muitos
recursos, salas bem montadas, laboratórios com computadores, espaço
privilegiado, lindo e limpo. Projeto educacional, plano de curso e plano de
aula. Muitas foram as reuniões para alinhamento da equipe. Essas, realizadas
todas as semanas, demandavam estudo, preparação à parte. A boa remuneração era
mais do que justa, diante da exigência para se cumprir. Mas, quando há
compensação, o profissional que ama o que faz, realiza com muito empenho todas
as tarefas que vão ajudá-lo a crescer e a estar em consonância com a missão, a
visão e os valores do grupo. Eu gostava de todas aquelas ações e de pertencer
ao quadro de mestres daquela escola. Esse sentimento parecia-me coletivo. Os
professores realizavam as tarefas, corrigiam inúmeras provas, elaboravam muitos
e excelentes projetos transversalizados e contextualizados. Todo esse esforço
era notado no resultado de cada aluno.
A sociedade com acesso àquela
instituição pertencia à classe média alta. Os pais e responsáveis eram
artistas, atletas, empresários, profissionais liberais, entre outros. Todos com
condição para arcar com aquele investimento tão importante, para a vida dos
filhos. Alguns acompanhavam de perto; outros enviavam babás e até governantas
para saberem dos resultados e resolverem questões disciplinares.
A arquitetura local era
extraordinária. O velho e o novo residiam lado a lado. O prédio mais antigo,
com colunas arredondadas e corredores com pé-direito altíssimo, estilo Barroco,
com portas de madeira altas e escuras. A construção nova era de linhas retas,
janelas rasgadas em toda a extensão das salas, muito arejado, limpo,
organizado, com rampas de acesso, elevadores, enfim todo o necessário para
atender aos sinais dos tempos. Assim a obra arquitetônica, assim a obra
educacional.
Nesse cenário, a hierarquia era
um tanto rígida. A pirâmide era composta por professores, coordenadores e
Diretoria. Isso significava pouca possibilidade para plano de carreira. Mas
reconhecíamos o diferencial da remuneração, e, todos, indistintamente,
trabalhavam orgulhosos pela obra que ajudavam a construir e pelo valor
atribuído. As frentes educativas eram divididas em três grandes áreas.
Integrávamos a área de linguagens, o que incluía Língua Portuguesa, Redação,
Literatura, Artes, Educação Física. Em cada uma dessas frentes, havia um professor que conduzia a coordenação.
Os demais deviam apresentar a ele os planos de aula, os projetos, as escolhas
de materiais didáticos, livros, entre outros. Em alguns momentos, esse
profissional assistia às aulas do coordenando e oferecia devolutivas.
Seguramente, e atenta aos sinais
do tempo, a coordenadora de nossa área sabia que, algum dia, haveria a
possibilidade de um dos coordenadores tornar-se Diretor da escola. Só é
possível entender as ações dessa pessoa, a partir desse enfoque. Mas, vamos a
ela.
O trabalho do coordenador é estar
ao lado da equipe, assistir para o crescimento das pessoas, ajudar a pensar
melhores práticas, inovar sempre que possível, tornar o grupo harmônico. Essa é
a lógica; mas, diante da vontade de crescer, a qualquer custo, em nome desses
bons conceitos, muitas ações irracionais podem ser desencadeadas e assim foi.
Ela queria mostrar à Direção o
quanto podia realizar. Para isso, não poupava a equipe. De forma insana,
refazíamos nosso plano, inúmeras vezes. Nem sempre com objetivos claramente
estabelecidos. As provas eram um capítulo à parte. Precisávamos interligar
textos e compor as questões relacionadas a eles. Até então, normalíssimo. Mas,
quando a coordenadora queria desestabilizar alguém que – naquela mente insana –
afrontasse as ordens dela, ou colocasse em risco o cargo que exercia, rabiscava
a prova toda, solicitava para retirar textos, desestruturava as questões e, ao
professor, restava refazer, refazer, refazer, até não sobreviver mais ao
estresse. A angústia ruminava a mente e a face de cada um que passava por esse
expediente. A tão esperada aprovação das provas e dos projetos vinha quase às
vésperas da realização delas. A devolutiva ocorria quando a direção já havia
cobrado o profissional. Com essa ação, a coordenadora proporcionava formas para
sugerir incompetência individual. Todos os outros professores riam de nós, por
saber o quanto aquilo era fútil, inútil e repetitivo.
As reuniões. Ah! As reuniões! Momentos
difíceis para os professores, sessões individuais de tortura realizadas junto à
coordenadora, em torno de uma mesa enorme, na sala dos professores, ou em uma
sala vazia. A coordenadora baixava os olhos para um papel, sempre com uma
caneta em mãos e, baixinho, educadamente, desmantelava toda e qualquer
segurança que o professor pudesse apresentar. Quando questões profissionais não
eram suficientes, falava contra o regionalismo da pessoa, atacava questões
pessoais. Em outros momentos, falava mal dos colegas da equipe. A técnica era
napoleônica: dividir para reinar. Sim, ela não nos queria unidos. Com medo das
represálias que surgiam em forma de isolamento ou de exposição sarcástica, as
pessoas se recolhiam à solidão. Alguns ousavam alinhamento e, logo, sentiam, na
pele, o quanto aquilo não agradava, pois os retaliamentos ocorriam, sempre. Era
enfrentar ou desistir. A maioria desistia e preferia seguir só. Dessa forma,
salvaguardava a pele, o emprego e não fazia frente à líder.
Uma amiga de trabalho
confessou-me que havia sido impedida de convidar-me para a festa de primeiro
ano da filha, sob pena de perder a amizade da coordenadora. Desculpou-se,
convidou-me mesmo assim, e eu, incrédula, demorei mais de uma semana para
digerir tal informação. Não compreendia o que ocorria ali. Era perseguição
gratuita; mas com todos, igualmente. Isso era perceptível por mim e por todos
os demais pertencentes à equipe ou não. No final do ano, todos os departamentos
apostavam quem seria demitido. Em nossa equipe, sempre havia alguém na mira e
as observações se voltavam para nós.
Assim, nesse cenário da Arte da
Guerra, na necessidade insana de fazer o melhor para garantir o emprego,
mantive-me lá por onze longos anos. Muito aprendi com outras pessoas. Dessa
coordenadora, aprendi o que não desejava fazer para continuidade da minha vida
e das pessoas, em volta de mim.
Mas, o mundo é composto de
mudanças. Conforme Camões:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
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E, assim, nesse universo de
mudanças previstas, por obra da observação da Diretoria, ou por algo que
desconheço, uma coordenadora geral foi
admitida para tomar conta de todas as áreas. Foi então que o desespero tomou
conta da nossa líder. Ela não sabia o que fazer para desestabilizar aquela
profissional, em tudo, diferente dela. Serena, ponderada, calma. Ao analisar o
processo de correção de nossas provas, pode observar as injustiças e iniciou um
processo de questionamento acerca daquelas ações.
Em me sentia um pouco mais
confortável; mas, depois de ter assistido a tanta injustiça, de ter visto
tantos bons profissionais perderem o emprego, em função daquela insanidade,
percebia que era tempo de partir, buscar novos desafios, enveredar por outros
caminhos. A decisão liberta as pessoas. Eu já me sentia livre daquele peso e,
dessa forma, livre para falar tudo o que fosse verdade e útil para mim e para
quem ficasse no grupo.
Em uma reunião, pude expressar,
profissionalmente, minhas contraposições e dificuldades de compreender aquelas
ações contra mim e contra o grupo, presente e ainda assustado. Alguns temem
enfrentar as situações, por medo de perder o emprego. Isso, em nossa sociedade,
é perfeitamente aceitável, vez que a repressão vinda do governo militar
promoveu o silêncio. Um grupo, mesmo liberto, vive a síndrome do medo, por
algum tempo. É preciso preparar bem o coração, para a liberdade de expressão.
Muitas vezes, elementos externos precisam ser acionados, para proporcionar
janelas de luz e clarear a mente das pessoas, rumo à liberdade.
Deixei o grupo, em meados de um
ano letivo. Decidida, nada faria com que eu permanecesse ali. A força que
represa a alma também obriga a encontrar soluções. Eu havia encontrado boas
oportunidades. Não podia, não queria permanecer naquele cenário.
A vida é algo que se faz para
frente. Isso aprendi com meu pai. Assim, com dignidade de dever cumprido e da
honestidade da atuação, sai por aqueles largos portões e, por anos, não soube
notícias daquela pessoa que eu não queria bem ou mal; mas, sim, distante. E
assim foi.
Tenho contato com bons amigos;
mas não tratamos mais do assunto. Ficou esquecido, no passado. Entretanto, a
vida teima em dar notícias. Foi por um dia destes em que precisava realizar uma
tarefa nas proximidades da escola. Havia tempo de sobra. Eu e meu marido
decidimos tomar um café, em frente ao colégio. Lá encontrei colegas amorosos,
que depois de tanto tempo, abraçaram-me carinhosamente. Fiquei feliz.
Soube que a Coordenadora de Artes
assumiu a Diretoria da escola. A nossa coordenadora solicitou desligamento, há
dois anos, por não considerar-se reconhecida.
A vida é curta e demora-se muito tempo para
ser quem se quer ser. Estabelecer objetivos é primordial. Não afastar-se deles
é essencial. Escolher entre o bem e o mal é a possibilidade humana na terra. A
colheita é obrigatória.
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