quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Coordenadora


Trabalhávamos em uma escola que completava duzentos anos de existência.  Muita experiência e competência na área educacional para jovens. Em comparação com as escolas públicas ou particulares locais, ofereciam remuneração muito acima da média para os professores que lá trabalhavam.
O trabalho do professor é muito mais missão do que profissão. Nele, resumem-se a formação da sociedade e do desenvolvimento de um país. No Brasil, há muito tempo e por questões políticas controversas, esse profissional sofreu o que chamamos de “sucateamento”. Há falta de plano de carreira, de incentivo, de bons salários, de condições para exercer a docência, enfim, sobrevivem os bravos e fortes que sabem o quanto significam para o encaminhamento da nação e, animados pelo retorno que, às vezes, recebem da sociedade, seguem firmes, nessa estrada. Essa é a dura realidade nacional.
Naquela escola, tínhamos muitos recursos, salas bem montadas, laboratórios com computadores, espaço privilegiado, lindo e limpo. Projeto educacional, plano de curso e plano de aula. Muitas foram as reuniões para alinhamento da equipe. Essas, realizadas todas as semanas, demandavam estudo, preparação à parte. A boa remuneração era mais do que justa, diante da exigência para se cumprir. Mas, quando há compensação, o profissional que ama o que faz, realiza com muito empenho todas as tarefas que vão ajudá-lo a crescer e a estar em consonância com a missão, a visão e os valores do grupo. Eu gostava de todas aquelas ações e de pertencer ao quadro de mestres daquela escola. Esse sentimento parecia-me coletivo. Os professores realizavam as tarefas, corrigiam inúmeras provas, elaboravam muitos e excelentes projetos transversalizados e contextualizados. Todo esse esforço era notado no resultado de cada aluno.
A sociedade com acesso àquela instituição pertencia à classe média alta. Os pais e responsáveis eram artistas, atletas, empresários, profissionais liberais, entre outros. Todos com condição para arcar com aquele investimento tão importante, para a vida dos filhos. Alguns acompanhavam de perto; outros enviavam babás e até governantas para saberem dos resultados e resolverem questões disciplinares.
A arquitetura local era extraordinária. O velho e o novo residiam lado a lado. O prédio mais antigo, com colunas arredondadas e corredores com pé-direito altíssimo, estilo Barroco, com portas de madeira altas e escuras. A construção nova era de linhas retas, janelas rasgadas em toda a extensão das salas, muito arejado, limpo, organizado, com rampas de acesso, elevadores, enfim todo o necessário para atender aos sinais dos tempos. Assim a obra arquitetônica, assim a obra educacional.
Nesse cenário, a hierarquia era um tanto rígida. A pirâmide era composta por professores, coordenadores e Diretoria. Isso significava pouca possibilidade para plano de carreira. Mas reconhecíamos o diferencial da remuneração, e, todos, indistintamente, trabalhavam orgulhosos pela obra que ajudavam a construir e pelo valor atribuído. As frentes educativas eram divididas em três grandes áreas. Integrávamos a área de linguagens, o que incluía Língua Portuguesa, Redação, Literatura, Artes, Educação Física. Em cada uma dessas frentes,  havia um professor que conduzia a coordenação. Os demais deviam apresentar a ele os planos de aula, os projetos, as escolhas de materiais didáticos, livros, entre outros. Em alguns momentos, esse profissional assistia às aulas do coordenando e oferecia devolutivas.
Seguramente, e atenta aos sinais do tempo, a coordenadora de nossa área sabia que, algum dia, haveria a possibilidade de um dos coordenadores tornar-se Diretor da escola. Só é possível entender as ações dessa pessoa, a partir desse enfoque. Mas, vamos a ela.
O trabalho do coordenador é estar ao lado da equipe, assistir para o crescimento das pessoas, ajudar a pensar melhores práticas, inovar sempre que possível, tornar o grupo harmônico. Essa é a lógica; mas, diante da vontade de crescer, a qualquer custo, em nome desses bons conceitos, muitas ações irracionais podem ser desencadeadas e assim foi.
Ela queria mostrar à Direção o quanto podia realizar. Para isso, não poupava a equipe. De forma insana, refazíamos nosso plano, inúmeras vezes. Nem sempre com objetivos claramente estabelecidos. As provas eram um capítulo à parte. Precisávamos interligar textos e compor as questões relacionadas a eles. Até então, normalíssimo. Mas, quando a coordenadora queria desestabilizar alguém que – naquela mente insana – afrontasse as ordens dela, ou colocasse em risco o cargo que exercia, rabiscava a prova toda, solicitava para retirar textos, desestruturava as questões e, ao professor, restava refazer, refazer, refazer, até não sobreviver mais ao estresse. A angústia ruminava a mente e a face de cada um que passava por esse expediente. A tão esperada aprovação das provas e dos projetos vinha quase às vésperas da realização delas. A devolutiva ocorria quando a direção já havia cobrado o profissional. Com essa ação, a coordenadora proporcionava formas para sugerir incompetência individual. Todos os outros professores riam de nós, por saber o quanto aquilo era fútil, inútil e repetitivo.
As reuniões. Ah! As reuniões! Momentos difíceis para os professores, sessões individuais de tortura realizadas junto à coordenadora, em torno de uma mesa enorme, na sala dos professores, ou em uma sala vazia. A coordenadora baixava os olhos para um papel, sempre com uma caneta em mãos e, baixinho, educadamente, desmantelava toda e qualquer segurança que o professor pudesse apresentar. Quando questões profissionais não eram suficientes, falava contra o regionalismo da pessoa, atacava questões pessoais. Em outros momentos, falava mal dos colegas da equipe. A técnica era napoleônica: dividir para reinar. Sim, ela não nos queria unidos. Com medo das represálias que surgiam em forma de isolamento ou de exposição sarcástica, as pessoas se recolhiam à solidão. Alguns ousavam alinhamento e, logo, sentiam, na pele, o quanto aquilo não agradava, pois os retaliamentos ocorriam, sempre. Era enfrentar ou desistir. A maioria desistia e preferia seguir só. Dessa forma, salvaguardava a pele, o emprego e não fazia frente à líder.
Uma amiga de trabalho confessou-me que havia sido impedida de convidar-me para a festa de primeiro ano da filha, sob pena de perder a amizade da coordenadora. Desculpou-se, convidou-me mesmo assim, e eu, incrédula, demorei mais de uma semana para digerir tal informação. Não compreendia o que ocorria ali. Era perseguição gratuita; mas com todos, igualmente. Isso era perceptível por mim e por todos os demais pertencentes à equipe ou não. No final do ano, todos os departamentos apostavam quem seria demitido. Em nossa equipe, sempre havia alguém na mira e as observações se voltavam para nós.
Assim, nesse cenário da Arte da Guerra, na necessidade insana de fazer o melhor para garantir o emprego, mantive-me lá por onze longos anos. Muito aprendi com outras pessoas. Dessa coordenadora, aprendi o que não desejava fazer para continuidade da minha vida e das pessoas, em volta de mim.
Mas, o mundo é composto de mudanças. Conforme Camões:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

E, assim, nesse universo de mudanças previstas, por obra da observação da Diretoria, ou por algo que desconheço,  uma coordenadora geral foi admitida para tomar conta de todas as áreas. Foi então que o desespero tomou conta da nossa líder. Ela não sabia o que fazer para desestabilizar aquela profissional, em tudo, diferente dela. Serena, ponderada, calma. Ao analisar o processo de correção de nossas provas, pode observar as injustiças e iniciou um processo de questionamento acerca daquelas ações.
Em me sentia um pouco mais confortável; mas, depois de ter assistido a tanta injustiça, de ter visto tantos bons profissionais perderem o emprego, em função daquela insanidade, percebia que era tempo de partir, buscar novos desafios, enveredar por outros caminhos. A decisão liberta as pessoas. Eu já me sentia livre daquele peso e, dessa forma, livre para falar tudo o que fosse verdade e útil para mim e para quem ficasse no grupo.
Em uma reunião, pude expressar, profissionalmente, minhas contraposições e dificuldades de compreender aquelas ações contra mim e contra o grupo, presente e ainda assustado. Alguns temem enfrentar as situações, por medo de perder o emprego. Isso, em nossa sociedade, é perfeitamente aceitável, vez que a repressão vinda do governo militar promoveu o silêncio. Um grupo, mesmo liberto, vive a síndrome do medo, por algum tempo. É preciso preparar bem o coração, para a liberdade de expressão. Muitas vezes, elementos externos precisam ser acionados, para proporcionar janelas de luz e clarear a mente das pessoas, rumo à liberdade.
Deixei o grupo, em meados de um ano letivo. Decidida, nada faria com que eu permanecesse ali. A força que represa a alma também obriga a encontrar soluções. Eu havia encontrado boas oportunidades. Não podia, não queria permanecer naquele cenário.
A vida é algo que se faz para frente. Isso aprendi com meu pai. Assim, com dignidade de dever cumprido e da honestidade da atuação, sai por aqueles largos portões e, por anos, não soube notícias daquela pessoa que eu não queria bem ou mal; mas, sim, distante. E assim foi.
Tenho contato com bons amigos; mas não tratamos mais do assunto. Ficou esquecido, no passado. Entretanto, a vida teima em dar notícias. Foi por um dia destes em que precisava realizar uma tarefa nas proximidades da escola. Havia tempo de sobra. Eu e meu marido decidimos tomar um café, em frente ao colégio. Lá encontrei colegas amorosos, que depois de tanto tempo, abraçaram-me carinhosamente. Fiquei feliz.
Soube que a Coordenadora de Artes assumiu a Diretoria da escola. A nossa coordenadora solicitou desligamento, há dois anos, por não considerar-se reconhecida.
 A vida é curta e demora-se muito tempo para ser quem se quer ser. Estabelecer objetivos é primordial. Não afastar-se deles é essencial. Escolher entre o bem e o mal é a possibilidade humana na terra. A colheita é obrigatória.



Nenhum comentário:

Postar um comentário