sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Porteiro do Edifício Higienópolis


Lavrador, nascido em Minas Gerais, Pouso Alegre, queria ter alguma oportunidade para a família. Via amigos locais saírem da terra e rumarem para São Paulo. Quando começou a prestar atenção ao fato, julgava esses imigrantes tolos. Afinal, viviam em pobreza; mas tinham  casa, simples, já desgastada pelo tempo, com falhas no reboco, herdada dos pais. Conseguiam frequentar festas locais, eram religiosos, tinham vida social. Todos esses pensamentos fizeram com que ficasse por ali, por mais tempo do que o necessário.
Concluiu apenas o Ensino Fundamental. Formou-se na oitava série e sentia-se muito feliz por isso. Afinal, continuar os estudos era inútil. Naquele local, havia emprego somente na roça. Era cuidar da lavoura, do gado. Nessa toada de vida, casou-se, teve dois filhos, um menino e uma menina.
A topografia de Minas Gerais costuma não ser muito hospitaleira àqueles que vivem da lavoura. Arar a terra é um desafio, por aqueles campos montanhosos e íngremes. Era preciso vencer a batalha de preparar a terra, para, depois, plantar. O filho crescia aventureiro e gostava dos tratores. Todos estimulavam as crianças, desde pequenas, para tomarem gosto por aquelas atividades. Depois, estudar pouco, comprar um terreno, construir uma casa, comprar alguns móveis. Será que a vida é só isso? Nesse questionamento, Antonio Cassemiro permanecia, por alguns instantes, enquanto descansava o rosto nas duas mãos apoiadas sobre o cabo da enxada. Sentia o suor escorrer pelo rosto, as mãos endurecidas pela calosidade.
Naquela semana, tinham muito a fazer. Era arar terra, preparar o solo. Eles precisavam plantar feijão. O terreno devia estar revirado, para afofar a terra e, dessa forma, receber a semente. Aquele grão tão precioso, nascido em vagens, alimentaria a mesa de muitos brasileiros. O compadre Joaquim, dono de um trator, cuidava de fazer esse serviço, para adiantar a plantação. Precisavam ganhar tempo. A chuva logo viria e molharia aquele espaço, para tornar a produção mais vantajosa.
Na lida, entre pensamentos e ronco de motor, permaneciam horas, desde a madrugada, bem antes de o sol nascer. Levavam a marmita. Às 09h00, almoçavam. Em torno das 15h00, voltavam para casa, hora de cuidar dos animais, da horta, recolher os ovos e o gado, alimentar os porcos. Às 07h00 jantavam. A vida transcorria na rotina. Demais, às sextas-feiras, encontravam-se na venda mais próxima. Um sanfoneiro e um violeiro tocavam uma modinha. Os fazendeiros levavam algo para comer. Essa era a festa deles.
A pausa para descanso era respeitada por religiosidade. O Padre puxava a orelha dos fieis que não compareciam à missa dominical. Só por essa razão, não aravam a terra aos domingos. Aproveitavam esse tempo para vestir a melhor roupa, calçar sapatos mais justos e ir ao comércio local para comprar alguns apetrechos necessários à fazenda.
Na segunda-feira, muito cedo, retomavam as atividades. Compadre Joaquim pensava em ampliar a plantação. Ele havia escutado sobre o clima propício para aquela produção, e algumas  sacas a mais ajudariam para a reforma do curral, tão necessário à propriedade. Para ganhar musculatura, permitiu ao filho que contava dezesseis anos o trabalho no trator. O menino ficou entusiasmado, sentia-se – verdadeiramente – homem, na posse daquela máquina. O Compadre via com gosto o quanto o rapaz era ousado, rápido, destemido. O menino enfrentava os morros e as pedras sem temor. A juventude traz dessas onipotências. Ele sentia no olhar do pai e na aprovação dos amigos da lida que estava bem no conceito de todos. Isso conferia a ele mais ânimo para trabalhar, sem descanso.
Foi em uma dessas viradas radicais, necessárias ao trator, que ele resvalou em uma pedra maior e tombou a máquina. Todos ouviram assustados o barulho que parecia mais uma explosão. Apressaram-se até o local em que ocorreu o acidente e encontraram, perplexos, o filho do compadre esmagado, entre o trator tombado e a pedra enorme com que colidira. Os amigos se apressaram em chamar o compadre que desmaiou ao ver a cena. Nem todas as sacas de feijão a mais trariam a vida do filho dele de volta. Não adiantava correr, tirá-lo dali às pressas. Tudo estava consumado. A semana tornou-se feriado, nada mais se fez, naqueles dias que se seguiram. Solidários, todos acompanharam a triste sina do amigo e da esposa inconsoláveis. Era o filho único. Em uma semana, compadre e comadre envelheceram mais de vinte anos. A vida havia perdido o viço.
Quando se demora em decidir um rumo, a vida pode apresentar cenas que provocam reflexões mais intensas. Foi por causa dessa perda sofrida pelo compadre que Antonio Cassemiro decidiu, de vez, sair daquele local. Queria outro destino para os filhos. Decidiu manter a casa da cidade, vendeu o pequeno sítio e conseguiu comprar uma pequena casa, em bairro simples e perigoso de São Paulo.
Ao mudar-se para a Capital, conseguiu emprego de porteiro, em um edifício de Higienópolis. Se trator esmagava filhos e deixava pais solitários, o transporte público de São Paulo não fazia por menos. Ele acordava às 04h00 para conseguir chegar ao trabalho por volta das 06h30. Para retornar a casa dele, lá se iam quase três horas a mais. Nesse ritmo de revezamento, com sete dias de trabalho por um de descanso, quase nunca estava em casa aos domingos. A missa já não era mais a rotina da família completa. A esposa dedicada permanecia na luta para conduzir os filhos no caminho do bem. São Paulo era grande e todas as dificuldades também apresentavam a mesma proporção. O bairro de Higienópolis era rico e contava com segurança, ruas asfaltadas, boas escolas, povo bonito, bem vestido, boas lojas. Em cenário totalmente contrário, estava o bairro do Penteado, pobre, com muitas favelas, jovens usuários de drogas por todos os lados, muitas brigas de rua nas escolas, professores amedrontados.
O homem que conhece algo melhor consegue traçar comparações. Durante a viagem para casa e ao verificar a discrepância de cenário, era fácil  para Antonio decidir o que queria para os filhos. Começou a perguntar valores de propriedades por ali. Não precisa ser algo grande, nem caro. Poderia ser apenas  cômodo com banheiro. Qualquer lugar, em Higienópolis, seria muito melhor para a família. Foi com tristeza que pode observar a impossibilidade de vender a casinha comprada na periferia e, com o mesmo valor, adquirir um cômodo no bairro nobre. Definitivamente, isso não seria possível. Ficou  entristecido por dois dias. Acontece que a tristeza vai embora, no momento em que o homem toma decisões. Sair da periferia, com a família era decidido. Conversou com muitos colegas e descobriu que poderia se candidatar à vaga de zelador do prédio vizinho. O Síndico o conhecia e gostava da disciplina que ele mantinha na portaria. Tomou coragem, mal sabia escrever, mas era homem disposto. Se preciso, conserto, troco, remendo, faço o que o senhor quiser. Ficou um pouco preocupado quando o síndico perguntou se ele tinha filhos. Dois; mas são bons meninos, obedientes, e a mulher cuida deles sim, senhor.
Aquela fala sincera provocou credulidade no síndico. O emprego é seu Antonio, espero que saiba das obrigações do zelador: aqui é preciso trabalhar todos dos dias, você não pode se ausentar aos feriados e finais de semana; os clientes são os moradores, eles precisam estar felizes com seu atendimento, combinado?
Antonio nem pensou duas vezes. A possibilidade de trazer os filhos para um lugar melhor e de passar mais tempo com eles era tudo o que queria. Colocaria olhos firmes no menino levado que tinha, mantê-los-ia no bem. A esposa era compreensiva, quando quisesse viajar para ver os familiares, poderia ir; ele ficaria para cuidar do prédio. Quando um homem se torna pai, a prioridade dele é o bem-estar dos filhos. Isso Antonio fazia bem. Ele e a esposa em tudo concordavam e, assim fizeram: eles se mudaram para aquele apartamento. Os benefícios eram importantes. Não pagava aluguel, água, luz. Dessa forma, conseguia fazer uma poupança e melhorar a propriedade de Pouso Alegre.
Antonio trabalhava duro, todos os dias, sem horários definido. O filho o acompanhava em muitas tarefas. Era um menino vivo, esperto, decidido. Via o pai com o sorriso estampado e imitava-o. Se pai é tão querido por atender tão bem às pessoas, vou fazer igual, quero ser igual ao meu pai, quando crescer. A vida imita a arte e os filhos imitam os pais. Assim cresceu e tornou-se um belo homem, sorridente, a serviço do próximo, sempre com soluções.
Com o tempo, estudou em escolas públicas, mas bem localizadas; iniciou o trabalho em uma companhia de seguros e, por mostrar-se sempre bem disposto, foi reconhecido e promovido. Edificou uma família muito bonita. A esposa, sempre ao lado dele, contribuiu para que o enfoque principal não se perdesse de vista. Líder sabe, desde sempre, o que quer e faz por merecer.
Conheci esse homem em uma das oportunidades de trabalho que a vida me oferece. Tratava-se do desenvolvimento da comunicação para líderes. Ele é Diretor Comercial de uma empresa mundial e é líder para muitos profissionais, dedicado a motivar, a acompanhar. Seguramente, destacou-se na jornada que se propôs a percorrer. Pessoa muito competitiva, entusiasmada, sorridente. Claro que havia alguns momentos para ajustarmos. Encontrei nele muita força, muita alegria em fazer as tarefas propostas e disciplina de sobra, para melhorar em tudo o que pudesse fazer, e assim fez.  A pessoa que se move a melhorar ultrapassa barreiras, torna-se imbatível.
Fiquei emocionada pela trajetória da vida dele e pude ver fotos do pai, da esposa, dos filhos, do neto – verdadeira linha do tempo e de uma vida. Hoje, ele é muito jovem, elegante e já avô. Uma oportunidade para essa criança que vai crescer no exemplo de um terreno fértil.
Em minha jornada de professora e de consultora aprendi que ensinamos pouco às pessoas. Entendi que o aprendizado acontece na possibilidade e na necessidade de cada pessoa. Percebi que o bom modelo ajuda a construir uma vida muito melhor, por significar a trilha a seguir.




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