quarta-feira, 28 de novembro de 2012

E-mail racional


Para a palavra racional encontrei alguns significados, por exemplo, alguém capaz de usar a razão, de raciocinar. O homem é animal racional. Também localizei que se refere a alguém capaz de se basear na razão, no raciocínio lógico; e não na emoção. A questão matemática, para este caso, ficou de lado. Ela não explica o envolvimento que o caso gerou.
Tenho desenvolvido pessoas para comunicação e, de fato, é preciso isentar-se da emoção para escrever e-mails. Esse tipo de comunicação tem impactado a vida de muitos profissionais e de muitas empresas. Trata-se de documento que permanece arquivado no servidor por dois anos, no mínimo. Por esse motivo, deve ser pensado, antes de acionar o dedo indicador com a velocidade com que tenho visto acontecer.
O pior cenário é aquele, em que o cidadão se arrepende de ter enviado uma mensagem e, imediatamente, envia outra para desconsiderar a anterior. Se havia alguma chance de não ser lida; agora, vai ser prioridade para quem recebeu. Dessa forma, torna-se inútil a tentativa de anular o texto àqueles desesperados por terem enviado comunicação com erro ou à pessoa errada.
São quatro situações impossíveis de retomar: a flecha lançada, a palavra dita, a oportunidade perdida e o enviar/receber do e-mail. É preciso enfrentar o fato de que o e-mail enviado pode adquirir projeção geométrica e geográfica de tal forma que não se tem mais controle sobre ele. Diante desse cenário, pensar muito antes de escrever é aconselhável.
Hoje, é muito mais comum a pessoa escrever um e-mail, pela facilidade com que essa ferramenta atinge a todos, do que fazer uma interação telefônica, para tratar assunto mais cotidianos, sem necessidade de registro. E assim, tenho visto emissão de documentos, com muitos erros e com consequências nefastas para o indivíduo e para o coletivo.
Qualquer dia, eu vou me dedicar a enumerar muitos fatos ligados ao tema. Mas, houve uma narrativa que chamou minha atenção, em um último curso sobre Comunicação oral e escrita, junto a profissionais de empresa de grande porte.
Os participantes pertenciam ao setor administrativo. Em meio ao grupo, havia Advogados, Administradores, Assistentes, Psicólogos, profissionais da logística, enfim, tratava-se de equipe seleta. Assim que concluímos a primeira parte do curso, saímos para almoçar. Nesses momentos mais informais, as pessoas aproveitam para comentar algo diferente.
Pude sentar-me ao lado de dois rapazes simpáticos. Percebia-se que eles tinham verdadeira sede do saber e que estavam incomodados diante das reflexões causadas na primeira parte do curso. Um deles, mais falante e bastante interessado contou-me que havia recebido um e-mail em que o líder do setor dele solicitava para escreverem e-mails mais racionais.
Ao receber aquela mensagem, de calmo tornou-se inquieto. Passou a pensar nos significados que o líder queria imprimir àquela mensagem. O primeiro pensamento, tomado pela emoção, foi que ser racional era diferente de irracional. Logo, se ele era homem, portanto não havia o que questionar. Mas, teria o líder insinuado que ele era irracional? Bicho?
Quando a inquietação toma a vida do homem, surge um “X”, em sua mente,             eu permanece até que ele o decifre ou o devore. Assim foi naquele dia. O que pensar? O que o líder pensava dele? Havia cometido algum engano? Por que o texto não indicava algo concreto?
As dúvidas dormiram com ele; mas, no dia seguinte, precisa esclarecer. Telefonou para o líder e solicitou uma reunião. Imprimiu o texto e levou-o para conversarem sobre o assunto.
O líder, sem sequer imaginar o que o texto havia causado, perguntou a ele:
- Como está? Tudo bem? O que houve?
- Bem, comigo, está tudo bem? E com o senhor? – perguntou o rapaz.
- Estou bem, um pouco cansado, com alguns problemas familiares – comentou o líder, com a tranquilidade de quem se sentia bem, junto ao colega de trabalho.
- Deu para perceber – retrucou o rapaz.
- Como assim? Está visível? – Perguntou o líder.
- Não, Senhor, está legível. – informou o colega.
- Pode me explicar? Legível? Como assim?
- É que o Senhor me chamou de bicho, ontem, no e-mail. - informou
- Eu não escrevi isso. Deixe-me ver na minha caixa de saída de e-mails de ontem. – falou o líder.
- Não precisa, está aqui, impresso, em minhas mãos. O Senhor pediu para ser mais racional, em meus e-mails. Se sou homem, logo sou racional. Não sou bicho.
- Nossa! Foi assim que você entendeu minha mensagem? Não pensava que pudesse ser assim.
- Então, sei que o Senhor tem problemas. Eu também tenho. Mas acho bom pensar antes de escrever. Eu imprimi o texto e vou guardar. Eu respeito o Senhor, e quero respeito para mim também.
É a situação não ficou resolvida, mesmo com aquele momento de reunião entre os dois. O assunto continuava a permear a mente daquele profissional que participou do meu curso. Há momentos na vida do homem que são muito marcantes e que permanecem, acrescidos de outras situações, em que não houve boa comunicação. Diga-se, de passagem, que a falha na comunicação quebra relacionamentos.
Comunicar é, antes de tudo, um ato de solidariedade. Pense bem. A palavra só pertence a você até o momento da emissão. A partir do recebimento do texto, o interlocutor vai atribuir significados a ele. É muito opotuno poder evitar a famosa frase: “Não foi isso que eu quis dizer.”.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A amiga desastrada




Conhecer as pessoas é o maior ganho da existência. Algumas são criativas, outras inteligentes, outras inspiradoras. A essa, a quem vou dedicar a narrativa, devo muito aprendizado. Foi uma grande mestra para mim. Costumo dizer que tudo o que comunica modifica. O convívio com essa pessoa a quem vou chamar, carinhosamente, de Marluce, proporcionou-me um grande bem-estar, além das alegrias que pudemos compartilhar. Se não declaro o nome verdadeiro, é apenas para proteger nossa amizade e nossa identidade.
“...Vou proteger seu nome, por amor, em um codinome beija-flor...”. Embora a relação não seja igual, toda vez que ouço essa música, identifico o respeito que se deve atribuir às pessoas de nosso relacionamento. Em uma pesquisa sobre o que é mais importante na relação entre as pessoas, o amor não foi o primeiro. Destacou-se, lá, o respeito. Por esse motivo, se aguço a curiosidade, premio os leitores com o prazer dessa história tão engraçada, mescla da realidade com a ficção.
Nosso trabalho de consultoras permitia colecionar experiência, vida, conhecimento e muitas aventuras juntas. Ela era engraçada, loira, estatura média, corpo escultural, sotaque carioca, de um olhar brilhante e expressão de menina sapeca. Em tudo criava e aprontava.
As histórias dela eram entre o engraçado e o tocante. A verdade é que ouvi-la, estar com ela era algo mágico. Que felicidade poder encontrar pessoas assi. Algumas vezes, o humor variava e ela se tornava uma pessoa nervosa, irritada. Acho que foi nessa distmia que nossas vidas precisaram encontrar caminhos diferentes. Houve uma estrada reta. Em um dado momento, deparamos-nos com uma bifurcação e cada uma seguiu o próprio caminho.
Em um dos sábados, em que atendíamos um cliente, para um curso, tínhamos também de ir ao casamento de uma grande amiga. Seguramente, estaríamos lá, para prestigiar o grande evento. A vida corrida não nos permite muito ensaio. Dessa forma, roupas no carro, logo pela manhã. O combinado era terminarmos o curso e nos arrumarmos no espaço do hotel. Depois, passaríamos em um shopping para comprar o presente. Pensamos em um belo cristal para decoração da mesa da sala de jantar. Tudo combinado. Passei na casa da minha amiga, logo cedo, para apanhá-la.
Ela veio ao meu encontro, com várias sacolas. Afinal, a indecisão, no momento de escolher a roupa, fez com que ela trouxesse logo o guarda-roupa. Uma mala era de maquiagem e acessórios; outra para os sapatos e outra para as roupas. Ela vinha com toda aquela bagagem enroscada e aos puxões. Sai do carro para ajudar e comentei:
- Nossa! Hoje vai ser o destaque, mais bonita do que a noiva.
Ríamos. Nossa amizade permitia essas cumplicidades. As falas eram subentendidas e tudo era entendido. O contexto era claro para nós.
- Hoje, vou trabalhar com essa sapatilha. Cansa estar o dia todo, em pé. E você sabe, né, sou desastrada, caio à toa.
Esqueci-me de dizer que ela não se equilibrava muito bem no salto. Dessa forma, precisava estar com sapatos baixos. Um só degrau seria suficiente para derrubá-la. Os saltos altos tinham ficado na mala, para, depois, irmos ao casamento. A ocasião requeria.
O trabalho foi intenso. No final do expediente, rumamos em direção ao shopping. Ir a esses lugares, aos sábados, em São Paulo, não é tarefa fácil. Para começar, a dificuldade de localizar uma vaga, no estacionamento. Não queríamos gastar dinheiro com manobrista. Procuramos um lugar e, logo, avistamos.
Sou ágil ao volante e enbiquei o carro, para estacionar de ré. Distraídas, em nossas conversas, não percebi que havia outro cidadão para ocupar o mesmo espaço. Lei da Física: dois corpos não ocupam o mesmo espaço, ao mesmo tempo. Consegui estacionar primeiro, ao que o cidadão soltou um sonoro “Filha da p.....”, para nós.
Minha amiga, excelente professora em Língua Portuguesa, ficou irritada e gritou para ele.
- Ô, cidadão, você não conhece a minha mãe. Xingue em Português correto. É “Filho de p...”.
Nesses momentos, a minha amiga dava aulas de português. A diferença entre utilizar um artigo definido ou não é designar a pessoa e conhecê-la. Nesse caso “de+a”, significava mãe conhecida. O indivíduo olhou com expressão maluca e desistiu de nós. Foi em busca de outra vaga.
Esse era apenas o começo de um momento ainda mais intrigante. Ao sair do carro, Marluce decidiu que já usaria o salto alto. Alertei-a sobre a dificuldade, ao vencer escadas, rampas, enfim. De nada adiantou, a vaidade falou mais alto. Abri o porta-malas e ela calçou o sapato alto.
Seguimos para a loja. Tínhamos em mente o que comprar, e a missão tournou-se mais fácil. Escolhemos o cristal, pagamas e saímos da loja, em busca de um café, para, depois, seguirmos para o casamento.
Sugeri que eu carregasse o pacote, com o cristal; mas ela não me deixou. Fez questão de carregá-lo. E assim seguimos, passos apressados, em direção à rampa de acesso aos estacionamentos que ficavam no andar de baixo. Ela, apressadinha, caminhava e, lógico, exibia um rebolado discreto; mas um pouco chamativo.
Foi em uma dessas trocas de passos que ela torceu o pé e se desequilibrou. Tudo aconteceu em fração de segundos. Mal pude segurar o cristal; mas não consegui retê-la pelo braço. Assisti paralisada à tentativa dela de se segurar em algo, ao descer aquela rampa em desalinho de passadas largas, com as mãos ao espaço, para tentar segurar em algo.
Em dado momento, encontrou um homem que caminhava à frente dela. Ele trajava calça de moleton e estava bem à vontade, naquela tarde de sábado. O que ela pôde segurar foi a cintura da calça dele. A peça de roupas não tinha muita firmeza e, com o solavanco que recebeu, no momento em que minha amiga se apoiou nela, desceu e deixou à mostra, a parte traseira do rapaz que, por conta do descuido, não vestia cuecas.
Um pouco distante eu via o rapaz e ela baixarem juntos. Ele segurava a parte da frente das claças, para proteger-se e dizia “moça, moça, moça...”. Ela afundava as unhas no traseiro dele, para tentar equilibrar-se. Ao fim, estavam agachados ao chão e o shopping, parado, para assistir àquele espetáculo sensacional.
Quando consegui ter domínio do que havia ocorrido, segui em direção a ela. Minha amiga chorava, envergonhada com a situação. O homem sumiu de nossas vistas. Pensei em socorrê-la, oferecer água, acalmá-la. Convidei-a para o café.
Abracei-a e fomos. Ao aproximar-nos do quiosque do café, para nossa surpresa, deparamos-nos com o rapaz das calças. Antes mesmo de a minha amiga se desculpar, ele segurou fortemente o cós e saiu de perto de nós. Nunca mais o vimos.




sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Porteiro do Edifício Higienópolis


Lavrador, nascido em Minas Gerais, Pouso Alegre, queria ter alguma oportunidade para a família. Via amigos locais saírem da terra e rumarem para São Paulo. Quando começou a prestar atenção ao fato, julgava esses imigrantes tolos. Afinal, viviam em pobreza; mas tinham  casa, simples, já desgastada pelo tempo, com falhas no reboco, herdada dos pais. Conseguiam frequentar festas locais, eram religiosos, tinham vida social. Todos esses pensamentos fizeram com que ficasse por ali, por mais tempo do que o necessário.
Concluiu apenas o Ensino Fundamental. Formou-se na oitava série e sentia-se muito feliz por isso. Afinal, continuar os estudos era inútil. Naquele local, havia emprego somente na roça. Era cuidar da lavoura, do gado. Nessa toada de vida, casou-se, teve dois filhos, um menino e uma menina.
A topografia de Minas Gerais costuma não ser muito hospitaleira àqueles que vivem da lavoura. Arar a terra é um desafio, por aqueles campos montanhosos e íngremes. Era preciso vencer a batalha de preparar a terra, para, depois, plantar. O filho crescia aventureiro e gostava dos tratores. Todos estimulavam as crianças, desde pequenas, para tomarem gosto por aquelas atividades. Depois, estudar pouco, comprar um terreno, construir uma casa, comprar alguns móveis. Será que a vida é só isso? Nesse questionamento, Antonio Cassemiro permanecia, por alguns instantes, enquanto descansava o rosto nas duas mãos apoiadas sobre o cabo da enxada. Sentia o suor escorrer pelo rosto, as mãos endurecidas pela calosidade.
Naquela semana, tinham muito a fazer. Era arar terra, preparar o solo. Eles precisavam plantar feijão. O terreno devia estar revirado, para afofar a terra e, dessa forma, receber a semente. Aquele grão tão precioso, nascido em vagens, alimentaria a mesa de muitos brasileiros. O compadre Joaquim, dono de um trator, cuidava de fazer esse serviço, para adiantar a plantação. Precisavam ganhar tempo. A chuva logo viria e molharia aquele espaço, para tornar a produção mais vantajosa.
Na lida, entre pensamentos e ronco de motor, permaneciam horas, desde a madrugada, bem antes de o sol nascer. Levavam a marmita. Às 09h00, almoçavam. Em torno das 15h00, voltavam para casa, hora de cuidar dos animais, da horta, recolher os ovos e o gado, alimentar os porcos. Às 07h00 jantavam. A vida transcorria na rotina. Demais, às sextas-feiras, encontravam-se na venda mais próxima. Um sanfoneiro e um violeiro tocavam uma modinha. Os fazendeiros levavam algo para comer. Essa era a festa deles.
A pausa para descanso era respeitada por religiosidade. O Padre puxava a orelha dos fieis que não compareciam à missa dominical. Só por essa razão, não aravam a terra aos domingos. Aproveitavam esse tempo para vestir a melhor roupa, calçar sapatos mais justos e ir ao comércio local para comprar alguns apetrechos necessários à fazenda.
Na segunda-feira, muito cedo, retomavam as atividades. Compadre Joaquim pensava em ampliar a plantação. Ele havia escutado sobre o clima propício para aquela produção, e algumas  sacas a mais ajudariam para a reforma do curral, tão necessário à propriedade. Para ganhar musculatura, permitiu ao filho que contava dezesseis anos o trabalho no trator. O menino ficou entusiasmado, sentia-se – verdadeiramente – homem, na posse daquela máquina. O Compadre via com gosto o quanto o rapaz era ousado, rápido, destemido. O menino enfrentava os morros e as pedras sem temor. A juventude traz dessas onipotências. Ele sentia no olhar do pai e na aprovação dos amigos da lida que estava bem no conceito de todos. Isso conferia a ele mais ânimo para trabalhar, sem descanso.
Foi em uma dessas viradas radicais, necessárias ao trator, que ele resvalou em uma pedra maior e tombou a máquina. Todos ouviram assustados o barulho que parecia mais uma explosão. Apressaram-se até o local em que ocorreu o acidente e encontraram, perplexos, o filho do compadre esmagado, entre o trator tombado e a pedra enorme com que colidira. Os amigos se apressaram em chamar o compadre que desmaiou ao ver a cena. Nem todas as sacas de feijão a mais trariam a vida do filho dele de volta. Não adiantava correr, tirá-lo dali às pressas. Tudo estava consumado. A semana tornou-se feriado, nada mais se fez, naqueles dias que se seguiram. Solidários, todos acompanharam a triste sina do amigo e da esposa inconsoláveis. Era o filho único. Em uma semana, compadre e comadre envelheceram mais de vinte anos. A vida havia perdido o viço.
Quando se demora em decidir um rumo, a vida pode apresentar cenas que provocam reflexões mais intensas. Foi por causa dessa perda sofrida pelo compadre que Antonio Cassemiro decidiu, de vez, sair daquele local. Queria outro destino para os filhos. Decidiu manter a casa da cidade, vendeu o pequeno sítio e conseguiu comprar uma pequena casa, em bairro simples e perigoso de São Paulo.
Ao mudar-se para a Capital, conseguiu emprego de porteiro, em um edifício de Higienópolis. Se trator esmagava filhos e deixava pais solitários, o transporte público de São Paulo não fazia por menos. Ele acordava às 04h00 para conseguir chegar ao trabalho por volta das 06h30. Para retornar a casa dele, lá se iam quase três horas a mais. Nesse ritmo de revezamento, com sete dias de trabalho por um de descanso, quase nunca estava em casa aos domingos. A missa já não era mais a rotina da família completa. A esposa dedicada permanecia na luta para conduzir os filhos no caminho do bem. São Paulo era grande e todas as dificuldades também apresentavam a mesma proporção. O bairro de Higienópolis era rico e contava com segurança, ruas asfaltadas, boas escolas, povo bonito, bem vestido, boas lojas. Em cenário totalmente contrário, estava o bairro do Penteado, pobre, com muitas favelas, jovens usuários de drogas por todos os lados, muitas brigas de rua nas escolas, professores amedrontados.
O homem que conhece algo melhor consegue traçar comparações. Durante a viagem para casa e ao verificar a discrepância de cenário, era fácil  para Antonio decidir o que queria para os filhos. Começou a perguntar valores de propriedades por ali. Não precisa ser algo grande, nem caro. Poderia ser apenas  cômodo com banheiro. Qualquer lugar, em Higienópolis, seria muito melhor para a família. Foi com tristeza que pode observar a impossibilidade de vender a casinha comprada na periferia e, com o mesmo valor, adquirir um cômodo no bairro nobre. Definitivamente, isso não seria possível. Ficou  entristecido por dois dias. Acontece que a tristeza vai embora, no momento em que o homem toma decisões. Sair da periferia, com a família era decidido. Conversou com muitos colegas e descobriu que poderia se candidatar à vaga de zelador do prédio vizinho. O Síndico o conhecia e gostava da disciplina que ele mantinha na portaria. Tomou coragem, mal sabia escrever, mas era homem disposto. Se preciso, conserto, troco, remendo, faço o que o senhor quiser. Ficou um pouco preocupado quando o síndico perguntou se ele tinha filhos. Dois; mas são bons meninos, obedientes, e a mulher cuida deles sim, senhor.
Aquela fala sincera provocou credulidade no síndico. O emprego é seu Antonio, espero que saiba das obrigações do zelador: aqui é preciso trabalhar todos dos dias, você não pode se ausentar aos feriados e finais de semana; os clientes são os moradores, eles precisam estar felizes com seu atendimento, combinado?
Antonio nem pensou duas vezes. A possibilidade de trazer os filhos para um lugar melhor e de passar mais tempo com eles era tudo o que queria. Colocaria olhos firmes no menino levado que tinha, mantê-los-ia no bem. A esposa era compreensiva, quando quisesse viajar para ver os familiares, poderia ir; ele ficaria para cuidar do prédio. Quando um homem se torna pai, a prioridade dele é o bem-estar dos filhos. Isso Antonio fazia bem. Ele e a esposa em tudo concordavam e, assim fizeram: eles se mudaram para aquele apartamento. Os benefícios eram importantes. Não pagava aluguel, água, luz. Dessa forma, conseguia fazer uma poupança e melhorar a propriedade de Pouso Alegre.
Antonio trabalhava duro, todos os dias, sem horários definido. O filho o acompanhava em muitas tarefas. Era um menino vivo, esperto, decidido. Via o pai com o sorriso estampado e imitava-o. Se pai é tão querido por atender tão bem às pessoas, vou fazer igual, quero ser igual ao meu pai, quando crescer. A vida imita a arte e os filhos imitam os pais. Assim cresceu e tornou-se um belo homem, sorridente, a serviço do próximo, sempre com soluções.
Com o tempo, estudou em escolas públicas, mas bem localizadas; iniciou o trabalho em uma companhia de seguros e, por mostrar-se sempre bem disposto, foi reconhecido e promovido. Edificou uma família muito bonita. A esposa, sempre ao lado dele, contribuiu para que o enfoque principal não se perdesse de vista. Líder sabe, desde sempre, o que quer e faz por merecer.
Conheci esse homem em uma das oportunidades de trabalho que a vida me oferece. Tratava-se do desenvolvimento da comunicação para líderes. Ele é Diretor Comercial de uma empresa mundial e é líder para muitos profissionais, dedicado a motivar, a acompanhar. Seguramente, destacou-se na jornada que se propôs a percorrer. Pessoa muito competitiva, entusiasmada, sorridente. Claro que havia alguns momentos para ajustarmos. Encontrei nele muita força, muita alegria em fazer as tarefas propostas e disciplina de sobra, para melhorar em tudo o que pudesse fazer, e assim fez.  A pessoa que se move a melhorar ultrapassa barreiras, torna-se imbatível.
Fiquei emocionada pela trajetória da vida dele e pude ver fotos do pai, da esposa, dos filhos, do neto – verdadeira linha do tempo e de uma vida. Hoje, ele é muito jovem, elegante e já avô. Uma oportunidade para essa criança que vai crescer no exemplo de um terreno fértil.
Em minha jornada de professora e de consultora aprendi que ensinamos pouco às pessoas. Entendi que o aprendizado acontece na possibilidade e na necessidade de cada pessoa. Percebi que o bom modelo ajuda a construir uma vida muito melhor, por significar a trilha a seguir.




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Coordenadora


Trabalhávamos em uma escola que completava duzentos anos de existência.  Muita experiência e competência na área educacional para jovens. Em comparação com as escolas públicas ou particulares locais, ofereciam remuneração muito acima da média para os professores que lá trabalhavam.
O trabalho do professor é muito mais missão do que profissão. Nele, resumem-se a formação da sociedade e do desenvolvimento de um país. No Brasil, há muito tempo e por questões políticas controversas, esse profissional sofreu o que chamamos de “sucateamento”. Há falta de plano de carreira, de incentivo, de bons salários, de condições para exercer a docência, enfim, sobrevivem os bravos e fortes que sabem o quanto significam para o encaminhamento da nação e, animados pelo retorno que, às vezes, recebem da sociedade, seguem firmes, nessa estrada. Essa é a dura realidade nacional.
Naquela escola, tínhamos muitos recursos, salas bem montadas, laboratórios com computadores, espaço privilegiado, lindo e limpo. Projeto educacional, plano de curso e plano de aula. Muitas foram as reuniões para alinhamento da equipe. Essas, realizadas todas as semanas, demandavam estudo, preparação à parte. A boa remuneração era mais do que justa, diante da exigência para se cumprir. Mas, quando há compensação, o profissional que ama o que faz, realiza com muito empenho todas as tarefas que vão ajudá-lo a crescer e a estar em consonância com a missão, a visão e os valores do grupo. Eu gostava de todas aquelas ações e de pertencer ao quadro de mestres daquela escola. Esse sentimento parecia-me coletivo. Os professores realizavam as tarefas, corrigiam inúmeras provas, elaboravam muitos e excelentes projetos transversalizados e contextualizados. Todo esse esforço era notado no resultado de cada aluno.
A sociedade com acesso àquela instituição pertencia à classe média alta. Os pais e responsáveis eram artistas, atletas, empresários, profissionais liberais, entre outros. Todos com condição para arcar com aquele investimento tão importante, para a vida dos filhos. Alguns acompanhavam de perto; outros enviavam babás e até governantas para saberem dos resultados e resolverem questões disciplinares.
A arquitetura local era extraordinária. O velho e o novo residiam lado a lado. O prédio mais antigo, com colunas arredondadas e corredores com pé-direito altíssimo, estilo Barroco, com portas de madeira altas e escuras. A construção nova era de linhas retas, janelas rasgadas em toda a extensão das salas, muito arejado, limpo, organizado, com rampas de acesso, elevadores, enfim todo o necessário para atender aos sinais dos tempos. Assim a obra arquitetônica, assim a obra educacional.
Nesse cenário, a hierarquia era um tanto rígida. A pirâmide era composta por professores, coordenadores e Diretoria. Isso significava pouca possibilidade para plano de carreira. Mas reconhecíamos o diferencial da remuneração, e, todos, indistintamente, trabalhavam orgulhosos pela obra que ajudavam a construir e pelo valor atribuído. As frentes educativas eram divididas em três grandes áreas. Integrávamos a área de linguagens, o que incluía Língua Portuguesa, Redação, Literatura, Artes, Educação Física. Em cada uma dessas frentes,  havia um professor que conduzia a coordenação. Os demais deviam apresentar a ele os planos de aula, os projetos, as escolhas de materiais didáticos, livros, entre outros. Em alguns momentos, esse profissional assistia às aulas do coordenando e oferecia devolutivas.
Seguramente, e atenta aos sinais do tempo, a coordenadora de nossa área sabia que, algum dia, haveria a possibilidade de um dos coordenadores tornar-se Diretor da escola. Só é possível entender as ações dessa pessoa, a partir desse enfoque. Mas, vamos a ela.
O trabalho do coordenador é estar ao lado da equipe, assistir para o crescimento das pessoas, ajudar a pensar melhores práticas, inovar sempre que possível, tornar o grupo harmônico. Essa é a lógica; mas, diante da vontade de crescer, a qualquer custo, em nome desses bons conceitos, muitas ações irracionais podem ser desencadeadas e assim foi.
Ela queria mostrar à Direção o quanto podia realizar. Para isso, não poupava a equipe. De forma insana, refazíamos nosso plano, inúmeras vezes. Nem sempre com objetivos claramente estabelecidos. As provas eram um capítulo à parte. Precisávamos interligar textos e compor as questões relacionadas a eles. Até então, normalíssimo. Mas, quando a coordenadora queria desestabilizar alguém que – naquela mente insana – afrontasse as ordens dela, ou colocasse em risco o cargo que exercia, rabiscava a prova toda, solicitava para retirar textos, desestruturava as questões e, ao professor, restava refazer, refazer, refazer, até não sobreviver mais ao estresse. A angústia ruminava a mente e a face de cada um que passava por esse expediente. A tão esperada aprovação das provas e dos projetos vinha quase às vésperas da realização delas. A devolutiva ocorria quando a direção já havia cobrado o profissional. Com essa ação, a coordenadora proporcionava formas para sugerir incompetência individual. Todos os outros professores riam de nós, por saber o quanto aquilo era fútil, inútil e repetitivo.
As reuniões. Ah! As reuniões! Momentos difíceis para os professores, sessões individuais de tortura realizadas junto à coordenadora, em torno de uma mesa enorme, na sala dos professores, ou em uma sala vazia. A coordenadora baixava os olhos para um papel, sempre com uma caneta em mãos e, baixinho, educadamente, desmantelava toda e qualquer segurança que o professor pudesse apresentar. Quando questões profissionais não eram suficientes, falava contra o regionalismo da pessoa, atacava questões pessoais. Em outros momentos, falava mal dos colegas da equipe. A técnica era napoleônica: dividir para reinar. Sim, ela não nos queria unidos. Com medo das represálias que surgiam em forma de isolamento ou de exposição sarcástica, as pessoas se recolhiam à solidão. Alguns ousavam alinhamento e, logo, sentiam, na pele, o quanto aquilo não agradava, pois os retaliamentos ocorriam, sempre. Era enfrentar ou desistir. A maioria desistia e preferia seguir só. Dessa forma, salvaguardava a pele, o emprego e não fazia frente à líder.
Uma amiga de trabalho confessou-me que havia sido impedida de convidar-me para a festa de primeiro ano da filha, sob pena de perder a amizade da coordenadora. Desculpou-se, convidou-me mesmo assim, e eu, incrédula, demorei mais de uma semana para digerir tal informação. Não compreendia o que ocorria ali. Era perseguição gratuita; mas com todos, igualmente. Isso era perceptível por mim e por todos os demais pertencentes à equipe ou não. No final do ano, todos os departamentos apostavam quem seria demitido. Em nossa equipe, sempre havia alguém na mira e as observações se voltavam para nós.
Assim, nesse cenário da Arte da Guerra, na necessidade insana de fazer o melhor para garantir o emprego, mantive-me lá por onze longos anos. Muito aprendi com outras pessoas. Dessa coordenadora, aprendi o que não desejava fazer para continuidade da minha vida e das pessoas, em volta de mim.
Mas, o mundo é composto de mudanças. Conforme Camões:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

E, assim, nesse universo de mudanças previstas, por obra da observação da Diretoria, ou por algo que desconheço,  uma coordenadora geral foi admitida para tomar conta de todas as áreas. Foi então que o desespero tomou conta da nossa líder. Ela não sabia o que fazer para desestabilizar aquela profissional, em tudo, diferente dela. Serena, ponderada, calma. Ao analisar o processo de correção de nossas provas, pode observar as injustiças e iniciou um processo de questionamento acerca daquelas ações.
Em me sentia um pouco mais confortável; mas, depois de ter assistido a tanta injustiça, de ter visto tantos bons profissionais perderem o emprego, em função daquela insanidade, percebia que era tempo de partir, buscar novos desafios, enveredar por outros caminhos. A decisão liberta as pessoas. Eu já me sentia livre daquele peso e, dessa forma, livre para falar tudo o que fosse verdade e útil para mim e para quem ficasse no grupo.
Em uma reunião, pude expressar, profissionalmente, minhas contraposições e dificuldades de compreender aquelas ações contra mim e contra o grupo, presente e ainda assustado. Alguns temem enfrentar as situações, por medo de perder o emprego. Isso, em nossa sociedade, é perfeitamente aceitável, vez que a repressão vinda do governo militar promoveu o silêncio. Um grupo, mesmo liberto, vive a síndrome do medo, por algum tempo. É preciso preparar bem o coração, para a liberdade de expressão. Muitas vezes, elementos externos precisam ser acionados, para proporcionar janelas de luz e clarear a mente das pessoas, rumo à liberdade.
Deixei o grupo, em meados de um ano letivo. Decidida, nada faria com que eu permanecesse ali. A força que represa a alma também obriga a encontrar soluções. Eu havia encontrado boas oportunidades. Não podia, não queria permanecer naquele cenário.
A vida é algo que se faz para frente. Isso aprendi com meu pai. Assim, com dignidade de dever cumprido e da honestidade da atuação, sai por aqueles largos portões e, por anos, não soube notícias daquela pessoa que eu não queria bem ou mal; mas, sim, distante. E assim foi.
Tenho contato com bons amigos; mas não tratamos mais do assunto. Ficou esquecido, no passado. Entretanto, a vida teima em dar notícias. Foi por um dia destes em que precisava realizar uma tarefa nas proximidades da escola. Havia tempo de sobra. Eu e meu marido decidimos tomar um café, em frente ao colégio. Lá encontrei colegas amorosos, que depois de tanto tempo, abraçaram-me carinhosamente. Fiquei feliz.
Soube que a Coordenadora de Artes assumiu a Diretoria da escola. A nossa coordenadora solicitou desligamento, há dois anos, por não considerar-se reconhecida.
 A vida é curta e demora-se muito tempo para ser quem se quer ser. Estabelecer objetivos é primordial. Não afastar-se deles é essencial. Escolher entre o bem e o mal é a possibilidade humana na terra. A colheita é obrigatória.