terça-feira, 23 de outubro de 2012

Narrativa cearense


Antonio Rodrigues da Silva, nascido e casado em Nova Russias, Ceará. Era um homem forte, do interior, forjado no calor da lavoura, musculoso. Cresceu assim, humilde, trabalhador, honesto e firme.
E, por conhecer esse caminho, casou-se com Marluce. Moça simples, que conhecera na colheita do algodão. Juntos, tiveram três filhos: duas meninas, um menino. Foi por aquela ocasião que Antonio pode ver a vida se multiplicar e, junto a ela, a possibilidade de a pobreza daquela situação se perpetuar.
Há momentos, na vida, em que uma espécie de raio ilumina a mente do homem. E foi daquela vez que Antonio viu, claramente,  o futuro que esperava por ele e pelos filhos, naquela cidade, naquela região.
Naquele dia dormiu com a dúvida e acordou com a certeza. Sim, aceitaria o convite do primo Josuel. Esse havia seguido para Brasília, em busca de oportunidade de trabalho. Foi pela época da inauguração da Capital. Em verdade, Antonio não sabia muito bem o que significava sair dali e buscar outro caminho. A vida só havia apresentado a ele pequenas trilhas. Mas, afinal, estava decidido,  para quem não tinha nada, qualquer coisa a mais poderia ser bem melhor.
Tomou coragem. Escreveu uma carta. Pediu explicações. Aquele mês se arrastava, à espera de resposta. Sol a sol, Antonio colhia algodão, no sítio do tio. Recebia Cr$4,00 por dia de trabalho. Ao ter o valor, em mãos, pensava nas cinco bocas que precisava alimentar, com menos de CR$1,00 por dia. Sofria por saber que a necessidade iria se arrastar por gerações. Definitivamente, precisava partir.
A angústia cessou, quando o agente do correio local cruzou a praça, montado na velha bicicleta e vestido com aquele uniforme amarelo desbotado, com uma carta em mãos. Nunca antes, aquela roupa do agente brilhara tanto com o sol. O coração disparou em uma batedeira enlouquecida. Antonio sabia. Aquela era a hora. Coragem homem.
O primo escrevia sobre o trabalho,o ganho e animava-o a partir. Antonio Chamou a mulher e informou-a da decisão. Ia só. Precisava ver tudo, antes de arriscar-se com a família. A esposa chorou. Parecia um adeus. Ele lançou um último olhar para os filhos, com a promessa de voltar. Chorem não, bichinhos.Eu volto. Prometo.

Contratou passagem com o pau-de-arara – caminhão que levava os patrícios para tentarem a vida, em  outras paragens. Nem feliz, nem triste, antes, um pouco assustado. Jamais havia se imaginado em tal situação. Assim foi. Só. A família ficou para trás. Acenaram adeus  até o caminho sumir, na estrada poeirenta, até não verem mais o pai. Naquele instante, Antonio se aproveitou do efeito da poeira e pode limpar os olhos. Homem não chora. Fique firme, vá.
E, assim, seguiram-se quinze dias, na carroceria daquele caminhão. Pouca comida. Quase sem água e sem paragens para se abastecer. Com o passar dos dias, a barba tomava conta daquele rosto já magro e, agora, com ar bem mais cansado.
Era ano de 1977. Há dez anos, Brasília havia sido inaugurada e muita mão de obra era necessária para erguer todos os prédios que acomodariam os governantes do Brasil. Foi nesse cenário que Antonio chegou por lá. Emprego certo, em construções. Ajudante de pedreiro, meia colher, CR$50,00, por dia. Era uma fortuna, nunca antes imaginada. Cansado; mas animado pelo ganho diário, viu as forças redobrarem e pegou firme na pá.
Revirar a terra era mais fácil do que revolver pedra, areia, cimento e água. Enquanto no Ceará plantavam algodão – planta baixa e de flor suave – no novo estado, plantavam prédios altos, duros, reforçados por barras de ferro e vigas de concreto. Aquilo não caia não senhor. Duro como pedra, alto igual a espigão. De vez enquando, Antonio comparava a altura dos homens à altura dos prédios. Como pode um homem tão pequeno construir prédios tão altos. Êta mundo besta, meu Deus.
Pensar era de graça. Comer o que serviam, durante o serviço na obra, e guardar o dinheiro, para trazer a família. Sim, ele os traria. Jamais deixaria aqueles olhos inocentes para trás. Sentia-se só. Queria amar a esposa e dormir, de novo, naquele colo macio, para aliviar a cama dura. Era do que precisava e ia fazer por onde. Trabalhou duro, juntou o dinheiro, conseguiu somar o valor das passagens.
Avisou a família. Que trouxessem tudo, roupas, o que desse. Voltar, talvez, fosse bem difícil.
A esposa, feliz, recebeu o aviso. Juntou os meninos “Bora prá Brasília. Nossa vida vai se outra. Mais feijão, na mesa. O pai do cêis mandou seguir.” Decidida, nem pensou, juntou os filhos, deu um banho neles, arranjou as trouxas de roupa – tudo o que tinham – e partiu, rumo ao marido. Sentia saudade, queria vê-lo. Estava feliz. Ele lembrou-se dela e dos filhos. Quantos não voltavam!
A viagem foi longa. As crianças queriam saber – demora, mainha?  Ela não sabia dizer, era a primeira vez, pedia paciência. Por fim, nem respondia. Sofria a falta de conforto, compensada pelas ideias de uma nova vida.
Chegaram, enfim. O marido esperava ansioso. Enquanto viajavam, ele juntava mais dinheiro, para poder arranjar um quarto; mas não fora possível. Dormiram dois dias no vão da ponte mesmo. O ar seco e quente contribuiu para acolhê-los. Estavam bem e felizes, juntos.
Foi no terceiro dia que conseguiu um cômodo para a família, com banheiro coletivo. Era um cortiço; mas para começar, estava bem. Alojou ali a família e “simbora, ganhar dinheiro”.

Os amigos da obra frequentavam o Morro o urubu. Lugar famoso pelas quengas que viviam lá. Ele nunca havia ido; mas a curiosidade o arrastou até o local. Ele forte, bem apessoado, já alimentado pela marmita da obra. Agora, estava na força do homem, no poder. A família por ali. Já podia dar-se ao direito de uma farra. Ninguém ia saber mesmo.
Envolvido pelo pensamento, não imaginava o momento decisivo que viveria ali, naquele lugar.
Aproximou-se um soldado, olhou para Antonio e  perguntou:
- Ô, paisano, tu és capaz de matar um homem
Ele, sempre pronto, respondeu:
- se for para salvar minha vida. Oxê, sim.
Sem sequer imaginar o que o esperava, o milico respondeu:
- Então, pegue esse porrete e seja polícia. Precisamos de homens fortes como tu, lá, no quartel.
E assim, Antonio se tornou polícia, respeitado. Salário bom, pode educar os filhos e comprar uma casinha. O plano dele era ver cada filho com uma casa própria. E isso, ele viu.
É, a vida tem dessas surpresas.
Encontrei o filho dele, motorista de um táxi, a caminho do aeroporto Juscelino Kubitscheck, em Brasília. Orgulhoso, contou-me a história da chegada e das bravuras do pai. Confessou que a mãe não sabia sobre o caso do Morro dos urubus. Não carecia.

                                                                                                           Irma Ugarelli

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