Antonio
Rodrigues da Silva, nascido e casado em Nova Russias, Ceará. Era um homem
forte, do interior, forjado no calor da lavoura, musculoso. Cresceu assim,
humilde, trabalhador, honesto e firme.
E, por conhecer
esse caminho, casou-se com Marluce. Moça simples, que conhecera na colheita do
algodão. Juntos, tiveram três filhos: duas meninas, um menino. Foi por aquela
ocasião que Antonio pode ver a vida se multiplicar e, junto a ela, a
possibilidade de a pobreza daquela situação se perpetuar.
Há momentos, na
vida, em que uma espécie de raio ilumina a mente do homem. E foi daquela vez
que Antonio viu, claramente, o futuro
que esperava por ele e pelos filhos, naquela cidade, naquela região.
Naquele dia
dormiu com a dúvida e acordou com a certeza. Sim, aceitaria o convite do primo
Josuel. Esse havia seguido para Brasília, em busca de oportunidade de trabalho.
Foi pela época da inauguração da Capital. Em verdade, Antonio não sabia muito
bem o que significava sair dali e buscar outro caminho. A vida só havia
apresentado a ele pequenas trilhas. Mas, afinal, estava decidido, para quem não tinha nada, qualquer coisa a
mais poderia ser bem melhor.
Tomou coragem.
Escreveu uma carta. Pediu explicações. Aquele mês se arrastava, à espera de resposta.
Sol a sol, Antonio colhia algodão, no sítio do tio. Recebia Cr$4,00 por dia de
trabalho. Ao ter o valor, em mãos, pensava nas cinco bocas que precisava
alimentar, com menos de CR$1,00 por dia. Sofria por saber que a necessidade
iria se arrastar por gerações. Definitivamente, precisava partir.
A angústia
cessou, quando o agente do correio local cruzou a praça, montado na velha
bicicleta e vestido com aquele uniforme amarelo desbotado, com uma carta em
mãos. Nunca antes, aquela roupa do agente brilhara tanto com o sol. O coração
disparou em uma batedeira enlouquecida. Antonio sabia. Aquela era a hora.
Coragem homem.
O primo escrevia
sobre o trabalho,o ganho e animava-o a partir. Antonio Chamou a mulher e
informou-a da decisão. Ia só. Precisava ver tudo, antes de arriscar-se com a
família. A esposa chorou. Parecia um adeus. Ele lançou um último olhar para os
filhos, com a promessa de voltar. Chorem não, bichinhos.Eu volto. Prometo.
Contratou
passagem com o pau-de-arara – caminhão que levava os patrícios para tentarem a
vida, em outras paragens. Nem feliz, nem
triste, antes, um pouco assustado. Jamais havia se imaginado em tal situação.
Assim foi. Só. A família ficou para trás. Acenaram adeus até o caminho sumir, na estrada poeirenta,
até não verem mais o pai. Naquele instante, Antonio se aproveitou do efeito da
poeira e pode limpar os olhos. Homem não chora. Fique firme, vá.
E, assim,
seguiram-se quinze dias, na carroceria daquele caminhão. Pouca comida. Quase
sem água e sem paragens para se abastecer. Com o passar dos dias, a barba
tomava conta daquele rosto já magro e, agora, com ar bem mais cansado.
Era ano de 1977.
Há dez anos, Brasília havia sido inaugurada e muita mão de obra era necessária
para erguer todos os prédios que acomodariam os governantes do Brasil. Foi
nesse cenário que Antonio chegou por lá. Emprego certo, em construções.
Ajudante de pedreiro, meia colher, CR$50,00, por dia. Era uma fortuna, nunca
antes imaginada. Cansado; mas animado pelo ganho diário, viu as forças redobrarem
e pegou firme na pá.
Revirar a terra
era mais fácil do que revolver pedra, areia, cimento e água. Enquanto no Ceará
plantavam algodão – planta baixa e de flor suave – no novo estado, plantavam
prédios altos, duros, reforçados por barras de ferro e vigas de concreto.
Aquilo não caia não senhor. Duro como pedra, alto igual a espigão. De vez
enquando, Antonio comparava a altura dos homens à altura dos prédios. Como pode
um homem tão pequeno construir prédios tão altos. Êta mundo besta, meu Deus.
Pensar era de
graça. Comer o que serviam, durante o serviço na obra, e guardar o dinheiro,
para trazer a família. Sim, ele os traria. Jamais deixaria aqueles olhos
inocentes para trás. Sentia-se só. Queria amar a esposa e dormir, de novo,
naquele colo macio, para aliviar a cama dura. Era do que precisava e ia fazer
por onde. Trabalhou duro, juntou o dinheiro, conseguiu somar o valor das
passagens.
Avisou a
família. Que trouxessem tudo, roupas, o que desse. Voltar, talvez, fosse bem
difícil.
A esposa, feliz,
recebeu o aviso. Juntou os meninos “Bora prá Brasília. Nossa vida vai se outra.
Mais feijão, na mesa. O pai do cêis mandou seguir.” Decidida, nem pensou,
juntou os filhos, deu um banho neles, arranjou as trouxas de roupa – tudo o que
tinham – e partiu, rumo ao marido. Sentia saudade, queria vê-lo. Estava feliz.
Ele lembrou-se dela e dos filhos. Quantos não voltavam!
A viagem foi
longa. As crianças queriam saber – demora, mainha? Ela não sabia dizer, era a primeira vez,
pedia paciência. Por fim, nem respondia. Sofria a falta de conforto, compensada
pelas ideias de uma nova vida.
Chegaram, enfim.
O marido esperava ansioso. Enquanto viajavam, ele juntava mais dinheiro, para
poder arranjar um quarto; mas não fora possível. Dormiram dois dias no vão da
ponte mesmo. O ar seco e quente contribuiu para acolhê-los. Estavam bem e
felizes, juntos.
Foi no terceiro
dia que conseguiu um cômodo para a família, com banheiro coletivo. Era um
cortiço; mas para começar, estava bem. Alojou ali a família e “simbora, ganhar
dinheiro”.
Os amigos da obra
frequentavam o Morro o urubu. Lugar famoso pelas quengas que viviam lá. Ele
nunca havia ido; mas a curiosidade o arrastou até o local. Ele forte, bem
apessoado, já alimentado pela marmita da obra. Agora, estava na força do homem,
no poder. A família por ali. Já podia dar-se ao direito de uma farra. Ninguém
ia saber mesmo.
Envolvido pelo
pensamento, não imaginava o momento decisivo que viveria ali, naquele lugar.
Aproximou-se um
soldado, olhou para Antonio e perguntou:
- Ô, paisano, tu
és capaz de matar um homem
Ele, sempre
pronto, respondeu:
- se for para
salvar minha vida. Oxê, sim.
Sem sequer
imaginar o que o esperava, o milico respondeu:
- Então, pegue
esse porrete e seja polícia. Precisamos de homens fortes como tu, lá, no
quartel.
E assim, Antonio
se tornou polícia, respeitado. Salário bom, pode educar os filhos e comprar uma
casinha. O plano dele era ver cada filho com uma casa própria. E isso, ele viu.
É, a vida tem
dessas surpresas.
Encontrei o
filho dele, motorista de um táxi, a caminho do aeroporto Juscelino Kubitscheck,
em Brasília. Orgulhoso, contou-me a história da chegada e das bravuras do pai.
Confessou que a mãe não sabia sobre o caso do Morro dos urubus. Não carecia.
Irma Ugarelli
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